SXSW 2024 Dia 5: Histórias com rosto, histórias sem rosto
A South by Southwest (SXSW) é um evento de dimensão mundial.
Uma mistura de conferência com festival, onde temas como inovação, cultura, marketing, design, produções audiovisuais e música se fundem em centenas de sessões e eventos a que assistem 300 mil pessoas de 100 países. Com esta escala, decidi ir à procura de Portugal em Austin. O Brasil está aqui em peso. É a maior delegação internacional da conferência, com mais de 1.600 participantes e 22 sessões. Quando salto de hotel para hotel para assistir às sessões – a minha média diária de passos na minha app de fitness é muito superior a 24 mil -, a língua que mais oiço na rua é o português ou, neste caso, PT BR. O inglês também domina, e pontualmente oiço alguém a falar alemão, holandês, francês. Português de Portugal, nem ouvi-lo. Mais difícil ainda encontrar oradores e projetos da minha terra.
Até ontem a grande exceção tinha sido a presença da nossa Daniela Melchior na passadeira vermelha do Paramount Theatre, para o lançamento do filme “Road House” (Profissão: Duro), onde partilha o ecrã com Jake Gyllenhaal e com o lutador irlandês Conor McGregor. Daniela é hoje uma atriz internacional incontornável e o seu último filme, o décimo “Velocidade Furiosa”, arrecadou 512 milhões de dólares em todo o mundo no ano passado. Desta vez a atriz portuguesa traz-nos a adrenalina do clássico de culto dos anos 80. “Road House” vai ser lançado em mais de 240 países no próximo dia 21 de março. Por aqui, a première obrigou ao fecho de várias ruas.
Foi completamente por acaso que conheci outro projeto luso que faz parte da exposição de arte imersiva que aterra em Austin vinda dos quatro cantos do planeta. Um projeto que me fez recuar até 2006. Na realidade, fez-me recuar aos confins mais retrógrados da existência humana.
Recebi uma mensagem no LinkedIn do André, que não conheço pessoalmente, mas que sabia que eu aqui estava por ter lido uma das minhas crónicas da SXSW: “Se quiser visitar e ver no SXSW um projeto português de realidade virtual, o Sérgio Galvão Roxo terá todo o gosto em recebê-lo.” Poucos minutos depois, estava a trocar mensagens com o Sérgio.
Gisberta. Para quem não se lembrar – espero que esta história continue a remoer na cabeça de todos – Gisberta era uma mulher transgénero que foi brutal e lentamente torturada e assassinada no Porto, em 2006 por um grupo de 14 adolescentes. Encontrei-me com o Sérgio num dos enormes salões de um dos hotéis, onde 36 projetos de realidade virtual, alguns com orçamentos avultados, partilham o mesmo espaço. Fui recebido pelo Sérgio, produtor e realizador, e pelo Pedro Velho, assistente de realização e ilustrador do projeto. E a conversa fluiu enquanto enfiava uns óculos que me deixaram inconfortavelmente às escuras.
“Seu Nome Era Gisberta: Uma história sem rosto” é uma experiência imersiva que foi criada como uma ferramenta educativa, como forma de lidar com “o outro” de uma forma mais informada. Não se fala da violência brutal a que a mulher foi submetida. Não há caras. É uma sucessão de imagens, ilustrações e uma terrível história narrada por outra mulher transgénero, a atriz Alexia Vitória. É de direitos humanos que estamos a falar e Sérgio quer passar uma mensagem de humanidade.
O projeto foi construído num editor de vídeo, onde foi composta a animação e as ilustrações foram feitas através de programas “usuais”, com recurso a texturas e pincéis desenhados à mão. Ao todo, custou 80 euros. Oitenta. Nunca diria. Sérgio quer agora chegar a uma audiência ainda maior e mais relevante: escolas. Quando regressar, vai por este plano de divulgação em marcha, com todos os apoios que conseguir angariar.
Ficámos muito tempo à conversa. Senti que tinha levado um murro no estômago e que tinha de pensar mais no que tinha acabado de experienciar. Afinal, diz Sérgio, “há pessoas que não conseguiram chegar ao fim da experiência”.
Crónica de Miguel Moreira Rato, CEO da Adagietto