A Benetton e a publicidade como um manifesto político e social
Quantas marcas tiveram a capacidade de gerar tanta controvérsia, indignação e admiração na mesma medida ao longo de décadas?

Uma mulher negra dá de mamar a um bebé branco. Um judeu ortodoxo e um palestiniano partilham com as mãos um globo terrestre. Um padre e uma freira beijam-se. A roupa ensanguentada de um soldado bósnio morto em combate. Um bebé acabado de nascer, ainda com o cordão umbilical. Um prisioneiro no corredor da morte. Duas crianças abraçadas e a sorrir, uma branca, de caracóis dourados, tal qual anjo querubim, a outra negra, de carapinha em formato de cornichos, numa alegoria às perceções racistas do bem e do mal.
Quantas marcas tiveram a capacidade de gerar tanta controvérsia, indignação e admiração na mesma medida ao longo de décadas? E quantas tiveram a ousadia de fazer campanhas que são verdadeiros manifestos políticos, questionando e desconstruindo ‘status quos’, estereótipos, formas de discriminação, crenças, moralismos ódios e certezas?
Não me ocorrem grandes marcas para citar. Mas há uma que tem em tudo isto a sua imagem de marca, tornando-se na personificação da velha máxima “todos diferentes, todos iguais”: a italiana United Colors of Benetton. Tudo graças à mente brilhante de Oliviero Toscani, que deixa o mundo neste janeiro, mas que deixa para sempre um legado ímpar de ousadia e ativismo no universo criativo.
“Uma fotografia torna-se arte quando provoca uma reação”, dizia Oliviero Toscani, fotógrafo e diretor de arte por trás de cerca de 20 anos de campanhas da marca italiana. Se assim é, podemos dizer que a Benetton espalhou arte pelo mundo como nenhuma outra teve o condão de fazer.
Mas não só: pôs também pessoas das mais variadas geografias e contextos políticos, sociais e religiosos a pensar sobre temas complexos, muitos deles verdadeiros tabus. Da fome à guerra, do racismo à homoafetividade, da anorexia ao HIV, da religião ao sexo, pelas mãos e pela mente de Oliviero Toscani parecia não existirem limites quanto ao que uma marca de moda pode usar como ponto de partida de questionamento social, através do contexto publicitário.
Se por um lado foi amplamente aplaudido pela irreverência e capacidade de pôr o dedo em tantas feridas, por outro, as suas campanhas chegaram a ser banidas em diversos países. Noutros, incluindo em Itália, levaram a protestos públicos.
Agradar a todos nunca foi o objetivo do fotógrafo. E é essa pluralidade de pensamento, numa tentativa deliberada de abrir diálogo e reflexão entre opiniões distintas, que torna o trabalho de Oliviero Toscani tão invulgar. Um cruzamento genial entre ativismo e criatividade, sem medo das consequências, capaz de perdurar no tempo e de continuar a ser mote de conversas que, décadas volvidas, permanecem difíceis.
Invulgar é também uma marca alinhar nisto, ainda para mais numa empresa familiar. Estamos a falar do início dos anos 1990, quando sai a campanha da Benetton com a imagem de um doente com sida no leito da morte, rodeado pelo amor da sua família. Mais de 30 anos depois, acredito que continuaria a ser polémica, o mundo demora a evoluir.
Não sei se muitas marcas teriam a coragem de embarcar nesta missão, que tem tanto de dar dignidade a vozes e a causas silenciadas, como de apontar o dedo às pessoas, às ideias pré-concebidas e aos interesses que as continuam a silenciar. A Benetton teve. A verdade é que este arrojo lhe valeu, durante longos anos, uma notoriedade inusitada, a par de um crescimento veloz além-fronteiras.
Das campanhas publicitárias que mostram o mundo na sua complexa diversidade, ao investimento em iniciativas sociais como a Fundação UnHate (criada pelo Grupo Benetton em 2011, para servir de contraponto à cultura do ódio e promover a proximidade entre povos, crenças e culturas).
Ou o apoio público à campanha ‘Power to Her Choices’, que defende um mundo onde todas as raparigas e mulheres têm o direito de decidir se e quando engravidar, há que saudar também a Benetton pelo seu envolvimento permanente nestas matérias, mesmo depois do fim da colaboração com o fotógrafo.
Como escreveu a marca nas suas redes sociais, “Oliviero Toscani foi uma força criativa que mudou para sempre o papel que a publicidade desempenha no debate público”. Esta é a herança valiosa que nos deixa a todos, e sobre a qual as marcas deveriam refletir.