A disciplina rainha
Um publicitário, um designer gráfico e um consultor de relações públicas entram num bar
Um publicitário, um designer gráfico e um consultor de relações públicas entram num bar. O barman serve-os e não resiste a perguntar:
— Peço desculpa, os senhores são uma anedota?
Ao que o publicitário, muito expedito e nada ofendido, responde:
— Eu não. Eles talvez.
Irritado com a afronta do colega, o designer gráfico não se fica:
— Tem piada. O engraçadinho sem graça a chamar anedota aos outros.
— Eu não chamei nada a ninguém. Eu disse “talvez”. E depois o enganador sou eu.
— Não me venhas com asteriscos. Ou retiras o que disseste, ou faço-te uma marca nova.
— Calma, senhores — intervém o relações públicas — já tivemos esta conversa muitas vezes e nunca acabou bem. Tomem as vossas bebidas.
O designer pega na sua imperial, mas insiste:
— Retiras?
— Não posso retirar o que não disse.
O designer não diz nada. Levanta apenas a copo de cerveja sobre a cabeça do colega e unge-o com o precioso líquido. Este não se mexe, não se desvia, fica estático, atónito, com cerveja a pingar do bigode à Brad Pitt, enquanto diz:
— O que é isto?
— É um ‘teaser’. Se tu podes pôr nomes, eu também posso fazer ‘teasers’.
— Um ‘teaser’ de quê?
— Disto — e assenta-lhe um murro na face molhada, fazendo o publicitário cair ao chão.
— O que é que tu foste fazer! — clama o relações públicas enquanto acode o colega agarrado a um hematoma na cara.
— Uma marca. Sempre quis fazer esta.
— Isto não fica assim! — ameaça o publicitário, soerguendo-se a custo.
— Pois não, vai inchar e demora a passar. As marcas são assim, duradouras, perenes, não são como as campanhas, que duram uns dias e desaparecem para sempre.
— Controlem-se, senhores, controlem-se! — brada o relações públicas — já passaram das marcas!
— Eu não passei nada, eu fiz uma simples chalaça e fui barbaramente agredido por este… este… designer! Tu és testemunha, RP, tu viste o que aconteceu aqui, tens de me dar razão, tens de ficar do meu lado!
— Lá estás tu a fazer campanha, e com meias-verdades, como sempre — replica o designer, enfurecendo o publicitário.
Esta acusação foi a gota de cerveja. Ainda a pingar do banho de puro malte dourado e brilhante, espuma cremosa e fina, corpo leve e macio e sabor frutado, o publicitário lança-se sobre o seu rival e embrulham-se os dois num novelo de esperneios e esbracejos e empurrões e agarrões, que o relações públicas já não vai a tempo de evitar com palavras.
— Senhores! Senhores!
Vê-se obrigado a entrar no novelo. Uma vez lá dentro, nota, por entre ganchos e pontapés, que os colegas, talvez por defeito profissional de quem trabalha em comunicação, vão legendando os golpes à medida que os desferem, com potência e pontaria variáveis.
Ao aplicar um novo gancho no mesmo sítio do primeiro, o designer diz “toma! Para aumentar o ‘logo’, como vocês gostam”. Ao que o publicitário, já com um inchaço de grande visibilidade e força cromática estampado no rosto, contra-ataca com um soco que explica asseverando que “ isto é para veres o que é o retorno imediato, que é coisa que vocês desconhecem”.
O designer sente a pancada. Concede que “finalmente vejo-te fazer alguma coisa com impacto”, mas não se dá por vencido. Era só uma manobra de diversão antes de soltar um pontapé à lá MMA que faz o opositor estatelar-se sobre cadeiras e mesas, felizmente sem clientes àquela hora. O embate é tal que arrasta também o RP e o barman, que, entretanto, se intrometeu para tentar salvar alguma mobília. Sem sucesso.
A luta não dá mostras de abrandar. Os argumentos, físicos e intelectuais, continuam a voar em todas as direções. “Vocês são descartáveis,” cadeira vai, “então descarta lá isto”, cadeira volta, “eu tinha vergonha de viver de trocadilhos”, copo estilhaçado, “vergonha era o que vocês deviam ter agora”, atira o RP, tentando atingir, intelectualmente, os dois adversários com uma só cajadada.
“Já ninguém acredita em vocês, um press release vale mais do que as vossas patranhas”, “cala-te, croquetes!”, e assim por diante até à exaustão de argumentos e energia dos três rivais de comunicação empresarial e do barman.
O cenário pós-briga é desolador. Dá a ideia que passou ali uma turba de adeptos de futebol. O bar está destruído e os envolvidos também.
Ninguém parece vencedor. A julgar pelo aspeto, todos saíram a perder da luta pelo trono da disciplina rainha, e todos são responsáveis pelo que aconteceu, incluindo o barman. Quis inovar, dizer uma graçola menos batida do “queria ou quer?” ou “copo de água ou copo com água?” e resultado é o que se vê: o bar de pantanas.
— E agora?
Pergunta ele a si próprio, aos clientes e aos céus. Do alto, nem sinal. Mas cá em baixo na Terra, o relações públicas, mesmo esgotado e ofegante e desgrenhado e ferido e suado e ensanguentado e com o fato Emidio Tucci todo sujo e rasgado, garante a todos na sua voz serena:
— Nada temam, eu limpo isto.