Alguns pares de idiotas
Uma dupla de criativos publicitários janta em noitada de trabalho e assiste a este episódio na televisão. Um deles desmancha-se a rir, o outro nem por isso
Estamos nos anos 90 do século passado. Mais concretamente, num episódio do ‘Seinfeld’. Mais concretamente ainda, no Monk’s Café, ponto de encontro habitual entre os amigos da série e cenário de muitos momentos inesquecíveis.
George e Seinfeld escutam com interesse uma conversa na mesa ao lado. Dois clientes que eles não conhecem — amigos ou namorados, não vemos bem, nem isso interessa para o caso — combinam um encontro, ou talvez seja melhor dizer um desencontro.
— Só tenho uma chave de casa. Se tiver de sair antes de tu chegares, onde é que eu a deixo?
— Debaixo do tapete da entrada?
— Debaixo do tapete? Isso é como ter um PIN do multibanco que é 1, 2, 3, 4.
— Pois. Má ideia.
Ouvindo isto, George Costanza engasga-se todo e depois diz a Seinfeld:
— Tenho de ir ao multibanco.
Noutro restaurante, este em Lisboa, uma dupla de criativos publicitários janta em noitada de trabalho e assiste a este episódio na televisão. Um deles desmancha-se a rir, o outro nem por isso.
— Não achaste piada?
— …
— Não me digas que tu também…
O outro completa a frase com um abanar de cabeça afirmativo. Agora sim: desatam ambos a rir. Riem até às lágrimas. Chamam a atenção de outros clientes. Alguns acham graça, outros desconfiam que estão bêbados. Os criativos nem reparam. Estão a gozar o prato. Ainda falam disso quando pedem a conta.
— Não foi das tuas melhores ideias, esse código.
— Pois não — concorda o criativo pouco criativo, enquanto leva a mão ao bolso traseiro das calças.
— Mau…
Não encontra a carteira. Apalpa os outros bolsos, procura na mochila, debaixo da mesa, na casa de banho, pergunta aos empregados, regressa à agência de olhos no chão pelo mesmo caminho, procura na secretária e numa sala de reuniões onde esteve, mas nada. A carteira não está em lado nenhum.
Conformado e muito menos bem disposto do que há minutos, o criativo liga ao seu banco para cancelar o cartão o mais rápido possível. A demora no atendimento é exasperante. Tempo é dinheiro, literalmente.
Não muito longe do restaurante, dois ladrões vasculham sofregamente a carteira. Encontram uma nota de 500 escudos, várias faturas, os documentos habituais, uma fotografia de uma mulher, um cartão de sócio do Belenenses e o multibanco. Desiludidos com o parco pecúlio, os meliantes exploram as opções que lhes restam. A sua experiência, que é vasta, diz-lhes que, em geral, os titulares de cartões bancários usam sequências com significado para criarem os códigos e, assim, comporem mnemónicas.
Vai daí, um dos carteiristas insere o cartão na ranhura e digita o ano de nascimento que consta no bilhete de identidade do criativo: 1, 9,7,4. Digita, de seguida, a soma máxima que é possível levantar num dia e ficam ambos à espera, num suspense que o boneco tristonho do multibanco não demora a resolver: Código pessoal errado. Restam duas tentativas.
Depois de insultarem o boneco e o criativo e o multibanco e o banco, os larápios procuram alternativas na carteira. No verso da foto da mulher, encontram um “amo-te” e o que parece ser outra data. Um deles acha que deviam experimentá-la, o outro discorda.
— Já tentámos uma data, ‘man’, devíamos pensar noutra cena.
— O quê?
— Pah, imagina, o gajo chama-se João, certo? Imagina que o código é tipo os números dessas letras nas teclas do telemóvel?
— Hã? Não estou a perceber.
O carteirista saca do seu Nokia (roubado) e mostra o teclado alfanumérico ao comparsa. Este percebe, mas hesita:
— Epah isso é bué rebuscado, ‘man’.
— Por isso mesmo! — contrapõe o outro e marca os números 5, 6, 2, 6, seguidos da quantia a levantar, fazendo regressar o boneco tristonho:
Código pessoal errado. Resta uma tentativa.
— Eu disse-te! Isso é muito rebuscado!
— OK OK, vamos tentar uma coisa mais básica, tipo 1, 2, 3, 4, sei lá.
— Fogo, isso também não, quem é que tem um código desses?
— Sei lá, um gajo que não quer pensar muito, há malucos para tudo…
— Fogo, não acredito que haja alguém que não tenha uma ideia melhor do que essa.
— Ya, não é muito difícil de adivinhar. Vamos tentar o número de sócio do Belém.
— Ya, boa ideia.