As palavras na ordem do dia no MIPCOM 2024
Não houve uma revelação bombástica. Nenhum slide a alertar para aquilo que todos deveríamos estar atentos porque vai transformar o setor
O Marché International des Programmes de Communication (MIPCOM) abriu a semana em Cannes às 9h, com o habitual painel da GLANCE, divisão de estudos de mercado sobre padrões de consumo de media em vídeo, da empresa Mediamétrie.
Pela primeira vez, não houve uma surpresa. Não houve uma revelação bombástica. Nenhum slide a alertar para aquilo que todos deveríamos estar atentos porque vai transformar o setor. Aliás, no dia seguinte, num painel dedicado ao segmento de ‘connected TV’ e ‘streaming’, a Broadcasters Audience Research Board (BARB) trouxe os dados relativos ao Reino Unido, de onde se sublinhou a mesma mensagem: convivência.
Aqui, contudo, aquecem-se os debates. A linha temporal passada mostra que esta convivência é real. Há um aumento do consumo de conteúdos em vídeo, que ultrapassa as quatro horas diárias. Se em alguns países há uma queda ligeira dos canais abertos, como nos Estados Unidos, com diferenças de menos 12 minutos, na Europa o cenário é bem diferente, com variações médias de menos de dois minutos, que é o mesmo que dizer, quase nada.
Nota-se, sim, uma quebra do consumo da televisão por cabo em mercados específicos, como Estados Unidos e Reino Unido, e uma subida das plataformas sociais assentes em vídeo (como o YouTube e o TikTok) nesses mesmos mercados (a par de uma estabilização do ‘streaming’, que parece não conseguir crescer na sua opção paga e, por isso, avança com pacotes de preços mais baixos e publicidade).
Coincidência e tendência
Naturalmente há coincidência, no que diz respeito às gerações Z e ‘millennial’, que se distribuem mais nas plataformas sociais e no ‘streaming’ e menos nos canais lineares. Mas no segmento com mais de 35 anos, a distribuição é muito democrática.
Já na tendência de futuro, ninguém sabe. Há quem faça uma regressão linear, conjugando o fator geracional como condicionante única e dizendo que os jovens adultos de hoje, daqui a dez anos manterão o tipo de consumo e, portanto, apregoando a desgraça para os incumbentes e o apogeu das BigTech.
Mas nem todos assinam essa ata da reunião, nomeadamente a BARB, que lembra como estas mudanças estão a acontecer de forma muito gradual e que serão ainda impactadas pelo que não sabemos: como por exemplo, a disrupção tecnológica que continua em curso, a reação dos incumbentes a essa disrupção e os fatores sociais.
Uma coisa é certa, os grandes formatos (séries, documentários, filmes, concursos, ‘reality-shows’, etc.) continuam a vir das produtoras clássicas e dos canais de televisão. A exceção não é a regra. E apenas a Netflix se continua a apresentar como o puro desafiador neste campo.
Continuando a analisar os dados apresentados pela GLANCE sobre os últimos 12 meses, há pouco de novo: os canais de televisão continuam a testar modelos de ‘janelas’ de emissão (entre colocar mais ou menos episódios durante a semana ou no ‘streaming’); os SVODs voltaram-se muito para o entretenimento, devido à greve dos guionistas do ano passado nos Estados Unidos, que afetou a produção de ficção, bem como numa maior aposta em eventos e jogos ao vivo de desporto. Todos sem exceção continuam a tentar encontrar grandes IPs (títulos únicos) para conseguir sucessos universais.
IA sem alarmismos
Ao contrário do que se esperava, a edição deste ano não foi dominada pela inteligência artificial (IA). Houve um extenso painel de três horas, onde foram vários os ângulos abordados, mas sem alarmismos e com algum entusiasmo.
A relevância da IA ao longo de toda a cadeia de valor na produção foi o mote, com empresas, como a Runway, a mostrarem pergaminhos do seu software para a geração de imagem em vídeo, ‘storyboards’, ‘trailers’, efeitos especiais, etc.
Uma miríade de empresas rodeava a sala, com muita gente interessada em saber mais, mas de notar também que o MIPCOM não é o lugar para a abordagem técnica, num mercado dominado pela criatividade e tendências do setor dos conteúdos, juntando produtores, distribuidores e canais de televisão ou ‘streaming’, antes sendo eventos como a IBC em Amesterdão as mais recheadas de engenheiros e demonstrações técnicas.
Ainda assim, direcionando aos ‘key-decision-makers’ presentes na sala, a sessão mais preenchida foi relativamente aos temas legais e, em específico, à proteção do ‘copyright’. Empresas, como a Calliope Networks, mostraram um novo modelo de negócio, de licenciamento, onde produtores de conteúdos organizam o seu catálogo e o licenciam às grandes e médias empresas de IA, para que estas possam treinar os seus modelos, sem arriscar multas pesadas e centenas de processos em tribunal em 190 mercados nos próximos muitos anos (como, aliás, fez a Adobe com agências de fotógrafos, para treinar o seu modelo Adobe Firefly).
Talento é o segredo
Num formato já habitual no MIPCOM, as MasterMind Keynotes trazem ao palco do Grande Auditório figuras relevantes na gestão deste setor. Foram especialmente relevantes as apresentações de Jane Turton, CEO da All3Media, Elsa Keslassy, editora internacional da Variety, e Channing Dungey, presidente e CEO da Warner Bros. Television Group.
Jane Turton referiu que o segredo continua a ser o talento, e conseguir fortes IPs, mesmo num ecossistema mais fragmentado. Sem o melhor talento não se conseguem boas histórias e personagens que apaixonem os espetadores, seja no ‘streaming’ ou na televisão linear, no cabo ou no cinema.
Elsa Keslassy notou o número elevado de regressos (‘reboots’) em todo o mundo e enfatizou que na Variety notam o padrão de produções de grande orçamento terem uma abordagem diferente das pequenas, que tentam ser ‘glocais’, ao invés das primeiras que sempre se desenvolvem com ambição universal.
Channing Dungey referiu o efeito escapismo, sobretudo num mundo pós-covid e a braços com guerras, onde por vezes as pessoas só querem ligar o ecrã e desligar-se dos problemas, ver gente bonita e sonhar um pouco. A propósito do regresso da saga de Harry Potter, enfatizou o ângulo que norteou o desenvolvimento desta e de todas as produções: refletir sobre a abordagem criativa que faz mais sentido, não por respeito à obra apenas, mas pelo contexto social previsto durante os anos em que a série irá para o ar.
Tendências de formatos
Por fim, a habitual sessão Fresh TV trouxe muitos ‘trailers’ de dezenas de formatos e as leituras da The WIT, empresa que analisa tendências no setor em termos de formatos.
A mensagem central foi o passado trazido ao presente. Desde concursos que outrora foram icónicos e regressam, seja pela adaptação à televisão de jogos de tabuleiro que todos jogámos há décadas, seja pela adaptação a ‘reality-shows’ de ideias outrora um sucesso como séries de ficção.
Entre muitos formatos, a ideia de traição ou de alguém dissimulado num grupo ou do conceito da ‘toupeira’ foram por demais repetidos, naquilo que parece atravessar vários géneros, sobretudo nos formatos ‘factuals’/não-guionizados e nos ‘reality-shows’.
Big Brother, TheVoice, Os Traidores ou Quem Quer Namorar com o Agricultor mantêm-se no topo da lista de formatos mais vendidos no mundo. E, a par, os programas com celebridades atravessam géneros e gerações, continuando a conquistar boas audiências, seja em registos mais cómicos ou melodramáticos.
Como é habitual, a sessão traz sempre um ou mais formatos inusitados aos padrões convencionais, seja para provocar a audiência ou para diverti-la. Este ano a pérola foi Don’t Show Your Pants, um concurso japonês de perícia da Kansai TV onde os participantes vestem umas cuequinhas prateadas e, entre mil e um jogos, devem conseguir atravessar obstáculos sem que alguma vez as cuecas se vejam no ecrã lá de casa.