Edição digital
PUB
Opinião

É o fim do fumo

Quase todos eram fumadores e quase todos acreditavam que o cigarro era uma parte fundamental do seu processo criativo, tão ou mais importante do que o café, a sua dupla de sempre

Opinião

É o fim do fumo

Quase todos eram fumadores e quase todos acreditavam que o cigarro era uma parte fundamental do seu processo criativo, tão ou mais importante do que o café, a sua dupla de sempre

Marco Pacheco
Sobre o autor
Marco Pacheco

Estávamos na era do fumo em espaços fechados, pré 1 de janeiro de 2008. Todos os dias o presidente desta agência de publicidade era o primeiro a chegar, sempre às 9h00 em ponto. Sentava-se na sua cadeira reclinável de cabedal preto, abria o jornal que tinha apanhado na receção do prédio, retirava do bolso o seu cortador de charutos, aparava um novo, acendia-o com o seu Zippo cromado e fumava-o exatamente até metade, o tempo que ele dava aos colaboradores para que eles chegassem e ocupassem os seus postos de trabalho.

Para um fumador como o presidente, apreciador de passas longas e espaçadas, meio charuto correspondia a cerca de 45 minutos, o que significava que por volta das 9h45 ele fechava o jornal e iniciava um ronda pela agência, acompanhado pelo seu inseparável companheiro.

Sempre que via um lugar ainda desocupado a essa hora, dava uma passa mais forte e sacudia um pouco de cinza num sítio central e visível do tampo. Era a sua maneira criativa (começou por aí a carreira) de dizer ao colaborador relapso “estive aqui e não te vi”.

Ninguém, do júnior recém-contratado, passando pelo diretor criativo até ao diretor-geral, estava livre de chegar ao seu lugar e encontrar sobre a mesa um presente daqueles, como se o charuto fosse um animal de estimação que no seu passeio matinal fosse fazendo as suas necessidades. Era desagradável, no mínimo, assustador em alguns casos mais graves.

As pequenas porções de cinza não eram sempre do mesmo tamanho, variavam consoante o grau de reincidência do funcionário. Quanto mais atrasos acumulados, maior o cúmulo de cinza.

Quando o montinho já tinha dimensão suficiente para poder ser, por exemplo, o resultado da cremação de um pequeno roedor, era sinal de que o infeliz contemplado já não tinha muitos dias de vida naquela agência, tão fumacenta como criativa, duas características aliás intimamente ligadas, pelo menos na perspetiva dos criativos da casa.

Quase todos eram fumadores e quase todos acreditavam que o cigarro era uma parte fundamental do seu processo criativo, tão ou mais importante do que o café, a sua dupla de sempre. Havia na agência uma discussão tão polémica e tão irresolúvel como a do ovo e da galinha: é o café que acompanha o cigarro ou é o cigarro que acompanha o café?

Mesmo entre os fumadores não havia consenso sobre quem era o líder desta dupla de estimulantes mentais, nisto muito diferente das duplas de carne e osso onde, regra geral, não é difícil perceber quem tem as ideias e quem simplesmente as acompanha. Uns e outros tinham visões muito diferentes sobre a iminente proibição do fumo em espaços públicos fechados.

Os criativos que não sabiam pensar estavam descansados. A falta do cigarrinho não faria com que tivessem ainda menos ideias do que zero. Já os criativos dignos desse nome estavam bastante apreensivos, para não dizer ansiosos, o que, ironicamente, fazia com que fumassem ainda mais. O que seria da sua criatividade sem ajuda da nicotina?

O que seria da sua genialidade sem aquele ritual de acender um paivante, puxar uma passa, deixar o fumo invadir o cérebro para depois o expelir lentamente, com ar pensativo, fixando o teto enegrecido da agência com o olhar distante de quem perscruta os confins do universo em busca de uma ideia redonda para um problema bicudo?

Como libertar a angústia da criação se não pelo fumo que se liberta de quem tenta criar? Não confiavam na cafeína para esse efeito, e nem as palavras de encorajamento dos colegas não fumadores conseguiam apaziguá-los:

— Ao início vai-te custar, mas depois habituas-te.

Que remédio, pensavam os fumadores, resignados, mas nem por isso menos ansiosos. Um dos criativos, no entanto, viu na ameaça da lei do tabaco a oportunidade perfeita para deixar de fumar. Não poder fazê-lo durante as oito, muitas vezes 16 horas de trabalho (embora nas noitadas a prevaricação fosse vista quase como um direito de quem fazia horas extra sem receber mais por isso), seria uma boa ajuda para começar.

— Vou cumprir a lei ainda antes de ela entrar em vigor.

Os colegas fumadores observavam-no com um misto de ceticismo e esperança. Se as ideias dele continuassem a ser boas, ficariam mais tranquilos. Se piorassem, seria a prova definitiva de que não podiam abdicar da nicotina para criar campanhas geniais, boas ou meramente honestas. Até as más, aquelas que tinham de fazer porque o cliente mandava ou porque o orçamento ditava, poderiam estar em causa.

Também para essas, ou especialmente para essas, era preciso inspiração, era preciso congeminar, era preciso ir “fumando um pensativo cigarro”, nas palavras do grande Eça de Queiróz. Para ele, “pensar e fumar são duas operações idênticas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento”, ou seja, ideias, que podem ou não ser materializadas.

A expressão “queimar a pestana” nasceu no tempo em que não havia eletricidade e era necessário estar muito próximo da luz fraca da vela para conseguir ler um texto, mas também pode aplicar-se ao cigarro do criativo. A criação é uma combustão. O produto são as ideias, os restos são o fumo.

As semanas foram passando, o dia da entrada em vigor da revolucionária lei aproximava-se, mas não foi preciso esperar muito para todos perceberem que o criativo abstinente, talvez com medo de ficar menos criativo, talvez incapaz de passar sem a nicotina, talvez as duas, tinha recaídas frequentes, ao ponto de ter de admitir aos colegas o óbvio:

— Estou viciado em deixar de fumar. Quando fumo, sinto-me mal e apetece-me deixar. Quando não fumo, entro em ressaca e apetece-me voltar.

Era uma evolução, sem dúvida, melhor do que o vício puro, mas não permitia tirar conclusões sobre o efeito da abstinência tabágica no desempenho profissional. Os criativos fumadores teriam de descobrir por si, teriam de penetrar sozinhos no território inexplorado da criatividade sem nicotina.

“Maldita lei!”, vociferaram muitos. O único aspeto positivo era já não terem de levar com a borra de cinza na secretária quando chegavam atrasados.

— Sempre quero ver como é que o presidente vai fazer agora.

Ele não tinha sido criativo? Pois que resolvesse aquele brief. Há males que vêm por bem. Alguns criativos, fumadores e não fumadores, achavam que deviam ter direito a uma tolerância maior dos que os colegas. Pontualidade é coisa de accounts, diziam. As boas ideias não têm hora marcada, aparecem quando lhes apetece e, portanto, eles também deveriam poder aparecer, sobretudo num sítio onde deixariam de ter condições para criar.

Uma ideia absurda para o presidente, claro, e eles sabiam-no, já tinham aflorado o assunto com ele. Ainda assim, e em jeito de provação, combinaram chegar todos atrasados no primeiro dia útil depois da entrada em vigor da lei: 2 de janeiro de 2008, uma quarta-feira que certamente não seria de cinzas.

Como sempre, também nessa manhã o presidente fechou o jornal onde se lia na manchete “É o fim do fumo”, tirou da caixa um charuto novo, certificou-se de que tinha o cortador no bolso e deu início à sua ronda matutina. Ao chegar ao lugar do primeiro de muitos atrasados, aparou a ponta do charuto e espremeu-o entre os dedos de modo a fazer cair o tabaco ainda por fumar sobre a secretária.

Tirando a cor e o aroma, o montinho era em tudo semelhante aos de cinza. A mensagem principal mantinha-se intacta — estive aqui e não te vi — tinha sofrido apenas uma pequena e necessária atualização: adaptem-se.

Sobre o autorMarco Pacheco

Marco Pacheco

Diretor criativo executivo da BBDO e escritor
Mais artigos
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB

Navegue

Sobre nós

Grupo Workmedia

Mantenha-se informado

©2024 Meios & Publicidade. Todos os direitos reservados.