Explorar a imaturidade infantil como nicho da cosmética é pernicioso
A campanha da Kiehl’s relembra algo essencial aos adultos envolvidos, sejam os responsáveis pelas marcas, os criadores de conteúdos ou os próprios progenitores
“Coisas com que as crianças não se devem preocupar: impostos, contas para pagar e uma rotina de skincare”. Esta mensagem pode ser lida numa recente publicação da Kiehl’s nas suas redes sociais e faz parte de uma espécie de campanha de anti-marketing a um novo mercado, que inúmeras marcas de cosmética têm vindo a surfar: as crianças e os adolescentes.
Pode, à partida, parecer estranho que menores de idade sejam um mercado a explorar quando falamos de cremes de tratamento de rosto. Contudo, a tendência é real e merece atenção.
Principalmente via TikTok, proliferam criadores de conteúdos, muitos deles também menores, que partilham vídeos sob o mote “get ready with me”, onde não faltam dicas de maquilhagem e beleza nem rotinas diárias de 10 passos para os cuidados de pele perfeitos, boa parte delas inspiradas nas que são praticadas por adultos.
Desde crianças de 10 anos a usarem retinol e ácido hialurónico, até adolescentes de 16 anos que não passam um dia sem pôr cremes antirrugas e anticelulite, a moda pegou.
Independentemente dos inúmeros alertas de dermatologistas, que são bastante perentórios quanto a esta tendência: a pele das crianças e dos adolescentes não tem maturidade suficiente para este tipo de produtos.
Até já há estudos médicos que a cunham como cosmeticorexia na infância e adolescência. Uma patologia caracterizada pela obsessão, desproporcionada e desajustada, com o envelhecimento e aspeto da pele, que levam crianças e adolescentes a abusar de cosméticos anti-idade.
Estas práticas são uma ameaça bastante real para a sua saúde, tanto física, como psicológica. Mas os conselhos dos profissionais de saúde fazem menos eco do que as campanhas de marketing e as ativações nas redes sociais, que conquistam a atenção deste público, facilmente manipulável.
A ‘hashtag’ #teewnsknicare é consumida de forma alarmante no TikTok, com dezenas de milhões de visualizações naquela aplicação. As meninas e as raparigas são as principais consumidoras destes conteúdos.
No início do ano, funcionários da Sephora nos Estados Unidos reclamavam as consequências de verdadeiras “invasões” de pré-adolescentes nas lojas, ora em busca de amostras, ora efetivamente a comprarem produtos sem supervisão de adultos.
Muitos confessavam a sua relutância quanto a venderem cosméticos potencialmente nocivos a pré-adolescentes, sem saberem os efeitos finais da aplicação em peles tão jovens, que não necessitam desse tipo de cuidados.
Diria que as marcas não se podem demitir desta responsabilidade, por mais apetecível que sejam os lucros resultantes deste mercado. Mas uma coisa é certa: os produtos não são baratos. Alguém os paga para que cheguem às mãos das crianças e adolescentes. Na maioria das vezes, os próprios pais.
Será porque também eles, principalmente as mães, estão sujeitas a um escrutínio constante à sua aparência, acabando por espelhar nas filhas as suas próprias angústias quanto à ideia da suposta aparência perfeita?
Fica a dúvida. Mas tal como já refleti por aqui há umas semanas, o peso dos estereótipos de beleza é enorme, é-nos dirigido de forma totalmente normalizada – até glamorizada, acompanha-nos a vida inteira e facilmente corrompe o discernimento nestas matérias.
Direito à infância deve ser protegido
A chamada escravatura da beleza é real junto das mulheres e tudo devemos fazer para não sermos nós, adultos, os primeiros a fomentá-la nas crianças.
Explorar nichos de negócios como este é totalmente pernicioso: por um lado, promove-se uma necessidade de consumismo precoce, totalmente criticável em termos éticos.
Por outro, fomenta-se desde tenra idade a ideia de que a beleza exige rotinas dispendiosas, complexas e indispensáveis.
Uma coisa é incentivarmos o processo exploratório das crianças e pré-adolescentes, que, sem surpresas, gostam do exercício de mimetismo das rotinas dos adultos.
Cá por casa, a minha filha pede amiúde para pintar as unhas, experimentar o meu batom ou, até mesmo, pôr um pouco de ‘blush’ e usar os meus saltos altos.
Não há mal nenhum nisto enquanto brincadeira, demarcando bem o cariz de experiência. Agora, alimentar-se junto de crianças a obsessão perversa de um ideal de perfeição no que à sua beleza concerne, prescrevendo-lhes comportamentos e preocupações vazios de propósito, é preocupante.
Se os riscos de alergias, queimaduras, manchas e irritações cutâneas provocadas pelo uso destes cosméticos é grande, o impacto psicológico e emocional no processo de construção de identidade e autoestima nestas idades pode ser atroz.
Já para não falar da absurda sexualização da imagem infantil, demasiadas vezes elencada na forma como os próprios conteúdos de incentivo a estes produtos são apresentados nas redes sociais.
A campanha lançada pela Kiehl’s faz frente a esta tendência e relembra algo essencial a todos os adultos envolvidos, sejam eles os responsáveis pelas marcas, os criadores de conteúdos ou até os próprios progenitores e demais adultos, que compram os produtos de beleza à miudagem: o direito à infância deve ser protegido.
Recorda a singularidade e a transitoriedade desta fase da vida, que, definitivamente, não deve ser passada sob a ansiedade de atingir ideais de perfeição estética.
Numa série de imagens que têm corrido as redes sociais – o mesmo veículo usado para a disseminação de campanhas que promovem o consumo de cosmética junto de crianças – podemos ver, por exemplo, uma menina com o rosto coberto de gelado, com a frase “o único creme antienvelhecimento que as crianças devem comprar”; um grupo de crianças coberta de lama, com a mensagem “a única máscara facial que as crianças devem usar”; um menino com a cara cheia de areia, e o conselho “o único esfoliante que as crianças devem usar”.
A marca, detida pela L’Oréal, não quer, contudo, menosprezar, nem tampouco desencorajar os reais cuidados que a pele exige na infância. Mas, quanto a isso, valha-nos a sensibilidade e bom-senso, com a recomendação de limpeza, hidratação e proteção solar enquanto tríade de cuidados a ter em conta no dia a dia dos mais novos.
Acredito que, com esta atitude, a Kiehl’s poderá também conquistar um nicho de mercado: o dos pais e demais cuidadores preocupados com estas matérias. Como se lê na página de Instagram da marca, “a infância passa muito depressa, não a desperdices em rotinas de skincare”.
Não nos esqueçamos disto.