Lembrete às mulheres (e, já agora, aos homens)
Urge ouvir a mensagem desta campanha da UN Women. “Eu sou poder, nós somos poder”. Por mais que nos tentem convencer do contrário

“Este ano, independentemente do que aconteça, recusamos que alguém nos tire o nosso poder, a nossa voz, os nossos direitos, as nossas oportunidades. Marchamos em frente, por todas nós”. Estas são as palavras-chave da campanha ‘We Are Power’ lançada pela UN Women a assinalar o Dia Internacional das Mulheres, relembrando que não só cada uma de nós é e tem poder, sejam quais forem as suas características, como juntas também o temos e o podemos amplificar.
Devemos reconhecê-lo e usá-lo ao invés de menosprezá-lo. E se nos tentarem limitar nesse poder individual e coletivo, revoltemo-nos, façamos frente à opressão. À mensagem deste vídeo inspirador que tem circulado na web, apenas junto um pedido: que não seja assim apenas no 8 de março, nem apenas este ano. Que seja todos os dias. E que os homens também se juntem nesta demanda enquanto aliados.
No que toca aos avanços da igualdade de género e dos direitos femininos, a UN Women deixa este lembrete: “desde as sufragistas às ativistas digitais, cada geração ultrapassou limites, quebrou barreiras e recusou-se a recuar. Por detrás de cada mudança política e vitória legal, houve feministas destemidas que se organizaram, protestaram e exigiram ação. O mundo de hoje é mais igualitário para as mulheres e raparigas do que nunca – mas o progresso ainda é demasiado lento, frágil e desigual”.
Vivemos num tempo de resistência a esta verdade empírica, com base em desinformação estrategicamente difundida por alas conservadoras que espalham falácias sobre os supostos ‘perigos do feminismo’ – que não é mais do que a defesa da igualdade de direitos, oportunidades e dignidade para todas as pessoas, independentemente do seu sexo ou género. Não se trata de as mulheres quererem vingança, nem tampouco de quererem mandar nos homens.
Se é para todos, porque falamos tanto nas mulheres?
Então, mas se é para todos, porque falamos tanto nas mulheres? Porque por mais que as desigualdades de género afetem todas as pessoas (sim, os homens também são vítimas do guião prescritivo misógino que serve de estrutura à nossa sociedade), os prejuízos históricos às vidas das raparigas e das mulheres são, invariavelmente, mais graves, ao nível da sua própria sobrevivência.
Como queremos que as mulheres se sintam em posição equitativa de poder no mundo, quando a própria casa continua a ser o sítio onde existem mais ameaças às suas vidas? E os seus principais carrascos continuam a ser ora os parceiros íntimos, ora os familiares? Podemos erradamente achar que isto só acontece em países subdesenvolvidos, mas olhemos então para a realidade europeia.
Sabiam que, em média, são assassinadas 50 mulheres semanalmente na UE, em contexto de violência doméstica? Só em 2024, registaram-se em Portugal mais de 30 mil ocorrências destes crimes, sendo a esmagadora maioria das vítimas mulheres, e dos agressores, homens.
Em 2023, o Índice de Normas Sociais e de Género do Programa da ONU para o Desenvolvimento, com base em dados recolhidos em 80 países, revelava também que uma em cada quatro pessoas considerava poder ser justificável um homem agredir a sua companheira. Sim, leram bem.
A par disto, o mesmo relatório mostrava que nove em cada dez pessoas tinha algum tipo de preconceito contra as mulheres. Entre eles, lá está, o preconceito do poder: 50% dos inquiridos considerava que os homens, por serem homens, eram melhor líderes políticos do que as mulheres e que deviam também ter prioridade no acesso a oportunidades de emprego.
Não surpreende, portanto que, em termos de representatividade política apenas cerca de 30% dos cargos ministeriais da UE sejam exercidos por mulheres – enquanto os homens ocupam quase 70%. E que a diferença salarial média entre géneros, para trabalho igual, ronde ainda os 13%, com o sexo feminino em eterna desvantagem.
Tudo o que nos falha
Não esquecer que as mulheres tendo menores oportunidades de emprego e de ascensão de carreira, acesso dificultado a cargos de liderança, rendimentos mais baixos (mesmo quando chegam a altos cargos, que é onde residem as maiores discrepâncias salariais), acabarão por ter também menores pensões e, portanto, uma velhice mais comprometida financeiramente, com impactos na saúde, liberdade e bem-estar. Poder económico, poder de liderança, poder de escolha, tudo isto nos falha.
Em 2025, lembremos isto: não há um único país no mundo onde a igualdade entre homens e mulheres seja uma realidade. As vidas das meninas e das mulheres continuam a ser esmagadas pelas mais diversas formas de desigualdade.
Os problemas são graves, com indicadores gritantes que não podemos menosprezar. Por exemplo, mais de 80% das vítimas de tráfico humano são mulheres, na sua maioria exploradas sexualmente. Vendidas tal qual mercadoria em pleno século XXI.
Há 129 milhões de meninas que, por serem meninas, estão atualmente privadas do direito universal de acesso à educação, com todo o impacto às suas vidas que daí advém. E no minuto em que escrevo estas palavras existem 23 raparigas menores que estão a ser obrigadas a casar algures no mundo. Estima a UNICEF que sejam 12 milhões ao ano, o que dá uma média de 23 por minuto.
Meninas que entram no ciclo de exclusão da educação, de dependência financeira, de consequente exposição a violência física, sexual e emocional, de gravidezes precoces com danos irreversíveis aos seus corpos, de total submissão. Meninas e adolescentes que são privadas de qualquer possibilidade de vida livre, com todo o seu potencial. Lá está, de viverem com poder.
A urgência da mensagem da UN Women
E como queremos que as mulheres tenham poder quando continuam a não ser donas sequer dos seus corpos? Um dos mais recentes relatórios da UNFPA, revelava também que cerca de 50% das mulheres do planeta não têm liberdade para decidir coisas tão essenciais quanto ter relações sexuais, usar contraceptivos ou, até mesmo, ir ao médico.
Mundo fora, o ataque feroz e obsessivo aos direitos sexuais e reprodutivos da mulheres pautam agendas de países que se dizem civilizados, como se as mulheres não fossem capazes de tomar decisões informadas e conscientes. Na UE, mais de 20 milhões de mulheres continuam sem acesso legal e seguro ao aborto, e nos países onde a interrupção voluntária da gravidez é legal, a consagração desse direito enfrenta inúmeros obstáculos (olhemos para Portugal).
Não tenhamos dúvidas: a ameaça de retrocessos aos direitos femininos está sempre à espreita, principalmente em tempos de instabilidade política. É onde estamos neste momento. Portanto, urge ouvir a mensagem desta campanha da UN Women. “Eu sou poder, nós somos poder”. Por mais que nos tentem convencer do contrário, por mais que nos tentem tirá-lo, a bem da manutenção de um status quo pernicioso.
O que pode acontecer quando as mulheres deixarem de duvidar do seu poder? Quando o tomarem nas suas mãos e se apoiarem umas às outras, percebendo a importância da sororidade? Que privilégios instituídos ficam em risco? É essa a dúvida, ou melhor, o medo do sistema patriarcal, que nos faz propositadamente duvidar da possibilidade de mudança de paradigma neste eterno jogo de poder.
O perigo não é a igualdade de género, nem tampouco o feminismo. O perigo é o machismo estrutural que destrói, que discrimina, que espartilha, que mata.