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Opinião

Pandemia de Comic Sans

Segue caminho, intrigado com a coincidência e sobretudo indignado com mais uma peça de comunicação que trata assuntos sérios com letras de brincar

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Pandemia de Comic Sans

Segue caminho, intrigado com a coincidência e sobretudo indignado com mais uma peça de comunicação que trata assuntos sérios com letras de brincar

Marco Pacheco
Sobre o autor
Marco Pacheco

Estamos no café onde o designer gráfico que protagoniza este pequeno apocalipse pessoal toma o seu pequeno–almoço, todas as manhãs úteis, enquanto lê o jornal. Logo na manchete, uma novidade insólita: um político ilustrado em vez de fotografado e o título no tipo de letra Comic Sans.

Toda a primeira página está assim, nome do diário incluído. O primeiro impacto é de repulsa. O designer gráfico detesta Comic Sans com todo o seu ser. Acha a fonte mal desenhada, difícil de conjugar com outras, tosca, apalhaçada. Apesar disso, vê algum mérito nesta utilização que, julga ele, será uma referência/homenagem ao festival de BD da Amadora.

Tem ideia de ver isto feito em anos anteriores, o que não tem ideia é de ver o miolo todo assim, sempre com ilustrações em vez de fotos e o texto invariavelmente em Comic Sans: os títulos, os cabeçalhos, os destaques, as citações, o corpo da notícia, as legendas, os números dos gráficos, os artigos de opinião, até os anúncios.

Muito engraçado, mas à terceira página a brincadeira começa a enjoar o olhar sofisticado do designer gráfico e, o que é pior, a infetar o próprio conteúdo da escrita.

Assuntos sérios como aqueles que são tratados neste jornal sério não usam Comic Sans. Política, economia, negócios, aborto, xenofobia, seca e guerra não podem ser grafados com esta fonte infantilóide e apatetada.

Tal como as pessoas, também o texto deve vestir-se de acordo com a ocasião. Ter Comic Sans num artigo sobre política é como ver na Assembleia da Républica um deputado de calções de banho. Não pode ser, tira toda a credibilidade, parece um jornal satírico sem graça.

Irritado com a infeliz inovação de layout, o designer fecha o jornal, sai e, já na rua, repara num múpi com um anúncio de seguros de vida, todo em Comic Sans. “Inacreditável”, diz de si para si e segue caminho, intrigado com a coincidência e sobretudo indignado com mais uma peça de comunicação que trata assuntos sérios com letras de brincar.

Mais à frente, repara num sinal de “proibido estacionar” na porta de uma garagem, também em Comic Sans.

Patético, pensa, a fonte esvazia toda a autoridade da proibição. Quem tem medo de estacionar ali? O designer estacionaria, até tem pena de não ter trazido o carro hoje, decidiu vir a pé porque não é longe, faz isso de vez em quando, mas nunca tinha reparado naquele sinal em Comic Sans, assim como nunca tinha notado o toldo do café O Baloicinho, os autocolantes na montra, o edital de um prédio em obras, os cartazes da farmácia, o nome da farmácia, até o “aberto” na porta está diferente.

— Mau. O que é que está a acontecer aqui?

O designer estaca no passeio ao dizer isto. Esfrega os olhos, reabre-os a medo e não quer acreditar no que eles confirmam: Comic Sans por todo o lado, e não é só onde ele já tinha visto.

Aquela ridícula fonte está também nas marcas e nas matrículas dos carros, nos anúncios das laterais e traseiras dos autocarros, nas paragens, nos cartazes de imobiliárias à janela, em todas as capas de todas as revistas e todos os jornais de um quiosque, nos cartazes da montra de um oculista e de um banco, na fachada de um supermercado, em todos os livros de uma livraria de rua, e o mais grave de tudo: na t-shirt que o designer veste.

É esta a imagem medonha que ele vê no reflexo da montra da livraria. A sua adorada t-shirt do Lou Reed à là David Carson, toda em Comic Sans. O designer gráfico está em choque. Desce a medo o olhar para a barriga e, dada a proeminência da dita, consegue ver perfeitamente o que está na t-shirt de pernas para o ar: Comic Sans de pernas para o ar.

A realidade confirma o reflexo: uma visão do inferno, o designer não consegue imaginar cenário mais dantesco do que aquele. Furioso, despe a t-shirt, atira-a ao chão e decide regressar a casa em tronco nu.

Não está em condições de trabalhar, não quer correr o risco de encontrar Comic Sans no sistema operativo do seu Mac, nos programas, nos sites, nas pastas, no mail, nos números do elevador, nas letras do WC, na roupa dos colegas, nos tote bags, em tudo o que tem letras no seu mundo.

Faz o caminho de volta a casa com os olhos semicerrados, a cabeça baixa, desejando ardentemente ser cego, um designer cego, coisa nunca vista. Ainda assim, consegue perceber o olhar das pessoas que o veem naquela figura seminua, entre elas alguns vizinhos que o conhecem. Alguns ficam abismados, outros riem-se como se ele fosse uma pessoa em Comic Sans, tosca e mal desenhada, apalhaçada.

Ao chegar ao apartamento, já um pouco depois da hora de entrada no trabalho, ouve o toque de mensagem no telemóvel, depois o toque do email, e outro de reunião.

Não tardam a ligar, pensa. Senta-se na mesa da cozinha, a divisão onde calcula haver menos letras, e espera. Espera aterrorizado que o telefone toque e mostre o nome do chefe em Comic Sans, o cargo também em Comic Sans.

Na verdade, até o acha um palhacinho birrento, até faz algum sentido, mas nem isso torna aquela imagem menos tenebrosa. Ninguém liga para já.

Apenas mais mensagens, whatsapps, notificações, tudo invisível porque ele virou o ecrã para baixo e felizmente, no verso, vê-se apenas a maçã, sem o nome. O designer nem quer imaginar o que a Comic Sans faria à marca do design por excelência.

Para se distrair, vai até à sala, sempre de olhos no chão para evitar os posters e os cartazes nas paredes. Liga a televisão sem olhar para ela e deixa-a num canal de notícias só para ouvir, só para saber se há mais alguém com o mesmo problema, mas nada, não é disso que falam.

Talvez em rodapé esteja escrito: vírus de Comic Sans afeta textos em todo o mundo. O designer respira fundo e decide correr o risco: levanta os olhos para o ecrã e há rodapé, sim, em Comic Sans, sim, mas não sobre isso, sobre o costume, novo aeroporto, guerra, furações, corrupção, temas sem importância se comparados com a pandemia de Comic Sans.

O designer cobre o televisor com uma toalha (lisa) e fica só a ouvir o ecrã, pode ser que ainda falem no assunto.

Nisto, o telefone toca na cozinha. O designer não se levanta, espera que ele se cale e assim acontece. Respira fundo. No ecrã-toalha passa o resumo do jogo do seu clube, o designer adorava ver, mas resiste. Verá depois, se algum dia for capaz de voltar a ver televisão. O texto está por todo o lado, até nos anúncios que, entretanto, começam.

O designer quer ver, mas não quer ver. Ganha coragem, destapa o televisor e depara-se com o fim do mundo em Comic Sans: todos os textos e todas as marcas de todos os anúncios em Comic Sans. Uma lágrima escorre-lhe rosto abaixo. Não sabe o que lhe está a acontecer, não sabe o que fazer. Pensa ligar para a Saúde 24, mas precisa do telemóvel e ver os textos do iPhone em Comic Sans será demasiado doloroso para ele.

Lembra-se então de tomar um calmante. Procura-o no armário de olhos abertos, não há outra maneira de saber qual é, mas ao ver a embalagem, desiste. Aquele medicamento em Comic Sans, com a bula em Comic Sans, não lhe passa confiança nenhuma. Toca o telefone novamente.

Não atende novamente. O aparelho cala-se, mas logo a seguir volta a chamar. O designer sabe que algum dia terá de o atender. Respira fundo, pega no iPhone de olhos fechados, passa o dedo na parte inferior do ecrã e fala:

— Estou?

— Então? Estou farto de ligar e mandar mensagens, adormeceste outra vez?

O designer olha à sua volta e percebe que está na cama. Era tudo um pesadelo de designer gráfico. Cada profissão terá os seus. Os cabeleireiros com pandemias de carecas, os políticos com manchetes de tabloides, os futebolistas com tijolos em vez de pés. Ossos do ofício.

Sobre o autorMarco Pacheco

Marco Pacheco

Diretor criativo executivo da BBDO e escritor
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