Quem ganha com o gigante mito da beleza?
Quantas empresas faliam se as mulheres passassem a gostar dos seus corpos?
Números do mais recente estudo apresentado pela Dove: duas em cada cinco mulheres dizem que prescindiam de um ano de vida para alcançar a sua aparência ou corpo ideal. Quantas fizeram parte desta reflexão? A pesquisa envolveu mais de 30 mil entrevistas, feitas em 20 países bem distintos, desde os Estados Unidos à Arábia Saudita, passando pelo Brasil e China. Convenhamos, esta amostra não é uma brincadeira.
Serão as mulheres simplesmente fúteis? Ou estarão sob uma pressão estética tão grande desde tenra idade que preferem pôr a saúde em risco, ou até mesmo abdicar de tempo de vida, para cumprirem expectativas sociais quanto à sua aparência? Tenho a certeza de que a resposta mais acertada é a segunda.
E digo-o por várias razões, começando desde logo pelo facto de também ter crescido sob essa pressão e escrutínio, sem nunca os ter escolhido. Eu e todas, TODAS, as meninas à minha volta, de uma forma ou de outra. A maneira prescritiva com que a sociedade nos policia os corpos desde que somos crianças é avassaladora, e combatê-la exige muita resiliência e reflexão.
A Dove, sendo uma marca de produtos de beleza, não se demite dessa responsabilidade e anda a fazê-lo há mais de 20 anos, quando lançou a inusitada campanha pela Beleza Real. Na altura, baseou-se num dado simples e irrefutável: apenas 2% das mulheres se consideravam bonitas.
Duas décadas depois, e com muitas campanhas pelo meio, onde a própria marca lutou contra padrões irrealistas de beleza, optando por uma representação plural dos corpos femininos, traz-nos novos dados: 68% das mulheres entrevistadas sentem-se pressionadas a emagrecer e 66% sentem-se pressionadas a parecerem mais jovens.
A par disto, “uma das maiores ameaças à representatividade da beleza é, aos dias de hoje, a utilização de ferramentas de IA”, alerta ainda a marca, prevendo um futuro próximo onde as mulheres e meninas estarão a ‘competir’ com imagens geradas artificialmente.
Quantas empresas faliam se as mulheres passassem a gostar dos seus corpos? Por mais chocantes que sejam, os dados supramencionados não surpreendem, dado que o escrutínio à nossa aparência começa logo no seio da própria família, provavelmente onde se tecem os comentários e apreciações com efeitos mais nefastos na construção da nossa autoperceção, tantas vezes sem consciência disso, nem tampouco más intenções.
Fora de casa, os estímulos relacionados com estereótipos estéticos estão por todo o lado, desde o cinema à moda, das revistas com imagens retocadas às influenciadoras das dicas para o corpo perfeito nas redes sociais, dos comprimidos para emagrecer aos cremes ‘anti-tudo’, das dietas hiperrestritivas ditas ‘do bem’ aos planos de ginásio supostamente milagrosos. A saúde serve de isco comercial, mas raramente é tida realmente em conta.
Apregoa-se continuamente uma teoria totalmente perversa de que a beleza – como se esta fosse uma regra de três simples, única, a almejar – é sinónimo de felicidade. Maior falácia impossível. A ideia dos corpos perfeitos é um construto social e económico que serve dois grandes propósitos, entre outros: encher os bolsos às mais diversas indústrias e manter o controlo sobre as mulheres.
Quem ganha com uma sociedade onde as mulheres se sentem sempre em falta, culpadas envergonhadas e ansiosas quando olham para os seus corpos? E quantas empresas e marcas iriam automaticamente à falência se as mulheres passassem a gostar de si mesmas quando se olham ao espelho? Vai sendo tempo de questionarmos isso.
Já dizia Naomi Wolf no seu fabuloso livro O Mito da Beleza: “A sociedade, de facto, não se importa com a aparência das mulheres per se. O que realmente importa é mantê-las dispostas a permitirem que outros lhe digam o que podem e o que não podem ter”.