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Opinião

Salsichas que fazem serviço público

Termos uma campanha promovida por uma grande empresa nacional é uma forma bastante positiva de se mostrar que o tecido empresarial pode ter o condão de ser agente de mudança

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Salsichas que fazem serviço público

Termos uma campanha promovida por uma grande empresa nacional é uma forma bastante positiva de se mostrar que o tecido empresarial pode ter o condão de ser agente de mudança

Sobre o autor
Paula Cosme Pinto

Pode uma marca de salsichas mudar o mundo? Certamente que não. Mas pode ajudar a esbater estigmas que afetam a saúde e as vidas de milhões de pessoas? Sim. E é o que a Izidoro tem estado a fazer com a sua mais recente campanha, provando que a responsabilidade social tem muitas formas, podendo seguir caminhos inusitados. E, neste caso, diria que é precisamente o fator surpresa um dos elementos-chave para que a mensagem pretendida chegue mais longe.

“Izidoro, o Mentalista sugere que fazer terapia é um orgulho”. Estou parada num semáforo quando me cruzo com um múpi com esta mensagem. Abaixo da frase, uma pequeníssima imagem de um frasco de salsichas, claramente, não são elas as protagonistas. Os carros atrás começam a apitar e sou obrigada a seguir em frente.

Mas levo comigo a sensação de espanto pelo que tinha acabado de ver. Por que raio estavam a misturar salsichas com terapia? Tinha sido eu a interpretar mal? E dei por mim ao longo do dia a procurar na rua mais imagens daquelas, curiosa sobre o seu intuito. Diria que uma campanha que tem o condão de nos aguçar a curiosidade desta forma, só pode ser considerada vencedora em termos criativos.

Da rua para o corredor do supermercado, volto a cruzar-me com ‘Izidoro, o Mentalista’ e as suas pertinentes oito sugestões, inscritas em frascos de salsichas: “a doença mental não te define como pessoa”; “chorar faz bem”; “a ansiedade é uma companheira difícil”; “o ‘burnout’ é um sinal para mudares de vida”; “sentir medo é normal”; “a tristeza faz parte da condição humana”; “a fragilidade faz parte de ti”.

Um pequeno código QR no fundo do rótulo remete para uma ‘landing page’, que explica melhor a ideia da Izidoro, que se juntou à reconhecida associação Manicómio, para desmistificar tabus sobre saúde e doença mental e ajudar a abrir um diálogo construtivo e descomplicado sobre este tema.

Na plataforma digital, é possível encontrar, por exemplo, desde conselhos práticos sobre como falar sobre doença mental, saber o que fazer e como procurar ajuda, se assim for necessário. Mas também apresenta um compêndio importante de informações estatísticas, que nos podem ajudar a pôr a pensar enquanto sociedade.

Sabiam, por exemplo, que um em cada quatro portugueses tem ou terá uma doença mental na sua vida? Ou que a prevalência de problemas de saúde mental em Portugal é a segunda mais alta da Europa? E que o número de adolescentes com sintomas depressivos tem vindo a crescer, com um aumento para 45% de jovens entre os 11e os 21 anos de idade? E que Portugal é o país da OCDE com maior consumo de antidepressivos?

Os números são graves, tal como é o impacto que estes têm na vida destas pessoas e respetivas famílias. A discriminação e a exclusão são uma realidade. O silenciamento e o menosprezo pelo efeito, tantas vezes devastador, que os problemas de saúde mental podem ter, também.

Os juízos de valor sobre quem sofre com eles é ainda bastante primário, e acabam por ser muitas as pessoas que arrastam sintomas durante demasiado tempo sem procurar ajuda. Com medo, ou pior, com vergonha.

Como se recorrer a psicólogos ou psiquiatras fosse coisas ‘de malucos’. Não é. Agora imaginem que alguém que está em sofrimento, encurralado no beco da vergonha social, se cruza com um destes frascos de salsichas. Que impacto terá nessa pessoa esta mensagem empática e o acesso a informação prática?

E quão poderosa é esta forma de normalizar e desmistificar uma narrativa ainda tão enviesada, entrando subtilmente no dia a dia da população, seja numa prateleira de supermercado ou ao chegar às prateleiras das suas próprias casas? A ideia, que contou com a criatividade da The Agência, merece todos os aplausos.

Da dimensão privada para a laboral, sabemos que o contexto do mercado de trabalho é atualmente um dos mais preocupantes, no que à deterioração da saúde mental diz respeito. Termos uma campanha promovida por uma grande empresa nacional é uma forma bastante positiva de se mostrar que o tecido empresarial, independentemente do seu setor de atuação, tem não só de estar atento a esta realidade, como pode ter o condão de ser agente de mudança.

Diria eu, começando desde logo por olhar para dentro da sua própria estrutura e rever ‘modus operandi’ internos, que contribuem para este estado crítico do bem-estar mental dos trabalhadores. O assunto é mesmo urgente. Segundo um estudo do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis, apresentado na última primavera, mais de 70% dos trabalhadores portugueses, de todos os setores de atividade, têm sintomas de ‘burnout’ e mais de metade têm três ou mais sintomas. Vamos mesmo continuar a ignorar esta realidade?

Sobre o autorPaula Cosme Pinto

Paula Cosme Pinto

Comunicadora pela igualdade de género
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