Woke isto chegou
O ponto de exclamação tem direito a ser usado. Nem que seja para dizer mal do ponto de exclamação!
Caros colegas de júri,
Permitam-me que vos leia uma declaração de voto. Sei que o mais habitual é fazê-lo de improviso, mas o que tenho para vos dizer é demasiado importante para ser deixado ao sabor de palavras escolhidas à pressa, sem o rigor e a ponderação que a ocasião e o assunto exigem.
A ocasião, como sabemos, é este prestigiado festival de publicidade onde temos a responsabilidade de premiar os melhores trabalhos do ano.
O assunto, esse, são os critérios com que são feitas essas escolhas. Há muito que ando para falar nisto em público, mas só agora, perante o que aconteceu nesta votação, ganhei coragem para avançar.
Sou redatora e gosto muito do que faço. Gosto sobretudo da minha ferramenta de trabalho, que é a língua portuguesa, e não posso continuar a compactuar com o tratamento que muitos, certamente a maioria, provavelmente a totalidade, dos meus colegas redatores dão a algumas palavras e alguns sinais de pontuação.
Os casos são muitos e, para dizer a verdade, não se limitam aos redatores, a discriminação linguística está instalada em todos os quadrantes da nossa indústria.
O preconceito é estrutural e assumido, ninguém disfarça a preferência ou repulsa por esta ou aquela palavra, este ou aquele sinal de pontuação.
Ora, eu não vejo a prática da língua assim.
Quando escolho um vocábulo em detrimento de outro, a decisão obedece apenas e só a critérios técnicos. A saber: qualidades expressivas, facilidade de compreensão pelo público-alvo, maior ou menor extensão (sobretudo em comunicação exterior) e atributos estéticos, como a musicalidade e harmonia com a resto da frase.
E o mesmo se passa com os sinais de pontuação: não discrimino entre vírgulas, pontos, travessões, aspas, parêntesis ou outros. Cada um tem a sua função e todos serão usados se o texto assim o exigir. Não evito nem substituo sinais de pontuação. Não tenho qualquer preconceito contra nenhum.
Infelizmente, poucos escrevem como eu. São incontáveis os casos de discriminação contra palavras e sinais de pontuação ao longo da minha carreira. Perdi a conta ao número de vezes que me pediram — exigiram! — que retirasse o “você” de um texto, alegando que era “antiquado e impessoal”.
Antiquado? Desde quando tratar o cliente com respeito é antiquado? E como pode um pronome pessoal ser impessoal? Houve um diretor criativo que chegou a afirmar, com todas as letras, que o ‘você’ transforma a marca numa tia de Cascais a falar com os filhos.
— Você coma tudo, Rodrigo.
De igual modo, foram variadíssimas as ocasiões em que, contra a minha vontade, tive de apagar ou substituir reticências em títulos meus.
Porquê? Porque é desnecessário, “parece que a frase fica a piscar o olho com muita força”, é tentar forçar um segundo sentido que deve estar nas palavras e não na pontuação. Deve? Mas porquê? Se as reticências também podem dizer, porquê evitar que digam elas?
Tudo isto é grave e lamentável, e tem, a meu ver, de ser combatido para bem da igualdade linguística. Mas não há discriminação maior do que aquela que sofre o ponto de exclamação.
O preconceito é antigo e tem vindo a agudizar-se com as novas gerações de escribas publicitários. Usar hoje uma exclamação é sinónimo de mau gosto, falta de estilo, coisa de anúncio de jornal regional — a sua melhor opção!
Não perca esta oportunidade única! Sempre ao seu lado! Por mais brilhante que seja, uma peça onde pontifique uma exclamação é automaticamente rotulada de popularucha, sem ideia, velha.
E foi precisamente isso que aconteceu, uma vez mais, neste festival, caros jurados. Na minha opinião, a imprensa “são gémeos!” só não foi premiada aqui porque muitos de vocês, os suficientes para formar uma maioria, têm um enorme preconceito contra o ponto de exclamação.
São incapazes de o ler sem um esgar de asco, quanto mais de escrevê-lo. Jamais! Nunca em texto algum! A desigualdade em relação a outras sinais é gritante. Ou melhor: gritante! Com que base? Se este sinal é útil e tem um significado claro, por que razão o discriminam?
O ponto de exclamação tem direito a ser usado. Nem que seja para dizer mal do ponto de exclamação! Que é piroso! Agressivo! Bafiento!
Próprio de títulos escritos pelo cliente! O que quiserem, caros jurados. Aceito melhor isso do que este silenciamento cobarde, sem uma explicação que, aliás, nunca poderia existir. Nada justifica esta cabala anti-exclamação.
E nada pode substituir a sua função. Nada! Não é a mesma coisa dizer “são gémeas.”, uma afirmação seca e fria, do que dizer “são gémeas…”, uma constatação desiludida, ou exclamar de coração cheio “são gémeas!” — ou até “são gémeas!!”, com uma exclamação… gémea.
Caros jurados, temos nas nossas mãos a oportunidade de repetir a votação e fazer justiça ao ponto de exclamação. É tempo de acabar com este terrível estigma.
Se premiamos títulos ‘pontuados’ com emojis de língua de fora e coraçõezinhos nos olhos, temos de ser capazes de fazer o mesmo por este injustiçado sinal.
Viva a exclamação!