Introdução à proteção de algumas coisas incorpóreas
Como é que os perfumes, que enchem de publicidade as páginas de revistas, as televisões e a internet, não têm tido praticamente proteção e que existam cópias mais ou menos descaradas dos perfumes, sem que ninguém se preocupe com isso?
Pedro Simões Dias
Fundador da Comporta Perfumes e advogado de proteção de direitos de marcas
Depois de uma anterior crónica ‘silly season’, parto para uma crónica ‘heavy stuff’. Vamos pensar que estamos no início da primeira aula, numa universidade, da cadeira de direito das marcas e do direito de autor.
Os cinco primeiros minutos começam assim: no mundo relacionado com a propriedade existem dois universos: (i) o da propriedade; e (i) o direito da propriedade intelectual. O direito da propriedade, cujos principais institutos, princípios e regras estão consagrados no Código Civil, relaciona-se com o universo da propriedade relativamente a bens tangíveis ou bens corpóreos (uma mesa, um carro ou, eventualmente, um terreno).
Já o direito relacionado a propriedade intelectual visa o universo de bens sem uma característica corpórea, mas que o direito também considera que devem ser protegidos. Ou seja, aquilo que o direito considera que deve ser protegido enquanto propriedade de uma pessoa relativa a bens incorpóreos ou intangíveis.
Mas agora não interessa uma grande discussão, que é longa, sobre se são bens incorpóreos ou intangíveis. Prefiro designar de bens incorpóreos porque admite-se que a dimensão do bem ‘intangível’ pode ter uma certa ‘transcendência’, relacionada com o metafísico e que manifestamente não cai no âmbito do direito à propriedade intelectual. A parte intelectual do direito tem dois grandes universos, seguindo a categorização que é adotada por diversos autores internacionais:
(i) o universo do direito da propriedade industrial, que é o direito da proteção relativa às marcas, patentes, desenhos industriais, mas também à concorrência desleal e ao ‘know-how’;
(ii) o direito de autor e dos direitos conexos que, por sua vez, tem um estilo de proteção similar (mas com diferenças) para essas também duas ordens: no caso do direito de autor, a proteção dos escritores, dos pintores, dos arquitetos, dos jornalistas, escultores, etc; e, por outro lado, os direitos conexos protegem os artistas (dos cantores aos bailarinos e aos músicos, entre outros), mas também os editores de música , produtores de filmes, as rádios e as televisões.
O direto de autor é o âmbito de proteção sobre as obras criadas e, portanto, a proteção daqueles que verdadeiramente criaram obras intelectuais, artísticas ou científicas; os direitos conexos são relativos à proteção das prestações de quem executou obras (os artistas), ou das produções que foram feitas, no caso dos produtores de vídeos, de álbuns e mesmo dos organismos de radiodifusão.
São dois mundos separados ainda que com alguns traços de similaridade, mas que têm uma diferença essencial: na propriedade industrial, existe um ‘numerus clausus’ de institutos protegidos. Isto é, só são protegidos os institutos jurídicos que estão expressamente previstos (marcas, patentes, etc).
No direito de autor não é assim: a formulação do artigo segundo do Código lista um conjunto de obras protegidas, mas esse elenco não é fechado, por força da indicação de ‘nomeadamente’, que precede a listagem que inclui, entre outras, composições musicais, obras de pintura ou escultura, e fotografia.
Quer dizer que o direito de autor tem uma flexibilidade para que, no futuro, ‘alguém’ possa entender que uma determinada obra não listada naquele elenco do famoso artigo também deva ser objeto dessa mesma proteção.
E quem será esse ‘alguém’? Desde logo, o juiz, mas até mesmo o legislador, que, aliás, até já o fez, quando considerou que os programas informáticos e as bases de dados também devem ser protegidos pelo direito de autor, ainda que tenham especialidades próprias.
Ou seja, o direito de autor tem uma abertura que permite que se possa vir a considerar como de proteção obras que o legislador não previu naquela lista, mesmo que já existissem ao tempo da publicação daquele diploma legal, quer outro tipo de obras que venham a ser criadas após aquela data, como as novas misturas de DJs, por exemplo.
Interessa-me considerar um tipo de obras que o legislador português, no seguimento do legislador internacional, não previu expressamente como objeto de proteção: os perfumes. Num jornal como o Meios & Publicidade, não acham que se deve questionar como é que os perfumes, que enchem de publicidade as páginas de revistas, as televisões e a internet, não têm tido praticamente proteção e que existam cópias mais ou menos descaradas dos perfumes, sem que ninguém se preocupe com isso?
Começarei a próxima crónica assim:
– Aventus, 100ml, €300; Armaf Club de Nuit, €31. Cheiram ao mesmo.
– TF Tuscan Leather, 100ml, €350; Parfum de Marly, Godolphin, 125ml, €265. Cheiram ao mesmo.
Ninguém contesta ninguém. Não vos parece estranho? A resposta fica para as próximas crónicas. Bom regresso ao mundo real, fora da ‘silly season’.