Lamechice, mas em carne e osso
Quase todos concordam que o anúncio de Natal da Coca-Cola, feito inteiramente com IA, não é minimamente natalício
Disclaimer: não posso dizer que o Natal seja a minha época do ano preferida e irrita-me o aproveitamento de quem decide investir a maioria das fatias dos orçamentos de comunicação em causas que adormecem no dia 26 de dezembro. Posto isto, vamos ao texto.
Chegou aquela altura do ano. Apesar da troca de presentes e do lambuzanço desregrado com doces de ovos acontecerem daqui a pouco mais de um mês, e do tempo lá fora nos levar a pensar que estamos na primavera, o Natal chegou. Já chegou às televisões. Já está a viralizar online e a dar que falar offline. As principais campanhas foram lançadas e, surpreendam-se, a lamechice está no ar.
Esta é a altura do ano em que o hastag #somostodosbonzinhos impera. São várias as causas que as marcas abraçam e há até algumas que decidem juntar quase todas na mesma cesta, para gritarem ao mundo que são solidárias. Este ano temos a John Lewis – a campeã das expetativas no que toca à campanha de Natal – a apelar ao espírito de irmandade e de nostalgia numa megaprodução de dois minutos.
O companheirismo é também o conceito da Disney, que investe ainda mais: são quatro minutos de descoberta e amizade entre um miúdo e um polvo. A Starbucks fala-nos da lufa-lufa que se vive na época natalícia e a Amazon lá nos traz o companheirismo e o apoio aos sonhos de outros, num filme a puxar à lágrima fácil. Por cá, ainda estamos na fase das campanhas da Black Friday mas a Popota ‘superstar’ já nos anda a pedir para nunca deixarmos de brincar.
Com mais ou menos produção, mais ou menos sucesso, as campanhas de Natal acabam por ser mais… do mesmo. É nostalgia, irmandade, diversidade, realização de sonhos, camaradagem, reencontro, perdão, inclusão. As causas – tal como as modas – chegam como ondas e o mar volta a estar ‘flat’ em janeiro. Como se tivessemos todos de aproveitar de forma ofegante a visão bíblica da época e sermos chamados à terra para um exercício de catarse comunitária.
Mas este ano há algo diferente. No meio de tanta estrela, grinalda e luz, temos a campanha da Coca-Cola. Essa, sim, deve ser olhada mais de perto. À primeira vista, é um filme como os outros todos. Cheio de luz e paisagens idílicas, por onde passa a caravana dos camiões da marca, provavelmente a abarrotar em presentes e grades de Coca-Cola para distribuir pelas casas do mundo inteiro.
Nada de novo. Igual a todos os outros. Mas este ano, o filme da Coca-Cola foi integralmente feito com recurso a inteligência artificial (IA). E se essa é a principal tendência do momento, e se todos dizem que a IA deverá ser o guia para quase tudo em 2025, os camiões da Coca-Cola vieram provavelmente obrigar-nos a ‘pôr uma abaixo’ e a carregar no travão.
O recurso a IA, por mais bonito que esteja, correu mal. Viralizou pelos maus motivos. Nas redes sociais, multiplicaram-se críticas à campanha por ser demasiado artificial. É uma visão distópica da sociedade dizem uns, nem sequer tem uma figura humana, gritam outros. E quase todos concordam que o anúncio de Natal da Coca-Cola, feito inteiramente com IA, não é minimamente natalício.
A verdade é que é nestas alturas que se ditam ou se matam tendências. E o único anúncio feito inteiramente com recurso a IA pode trazer-nos uma mensagem pouco natalícia, para quem acha que a IA vai revolucionar as nossas vidas nos próximos anos. Mantenhamos as lamechices, mas não retiremos a humanidade. Lágrimas sim, e até podem ser de crocodilo, desde que não sejam fabricadas em pós-produção.
“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra” parece ser a reação pública a este anúncio de Natal. Retiramos daqui ensinamentos para trabalharmos eficientemente aquela que é a grande tendência dos próximos anos?