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Os telemóveis que ouvem as nossas conversas

O exemplo máximo das leis antes do seu tempo é o quadro regulamentar-normativo relativo ao tratamento de dados pessoais

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Os telemóveis que ouvem as nossas conversas

O exemplo máximo das leis antes do seu tempo é o quadro regulamentar-normativo relativo ao tratamento de dados pessoais

Sobre o autor
Pedro Simões Dias

Há uns dias, a minha mulher, com quem estou casado há 28 anos, fez-me uma declaração de amor (para que conste, eu faço-lhe muitas).

Devo ser um tipo desinteressante porque não estou em listas de WhatsApp de amigos que partilham conteúdos, digamos, ‘interessantes’. Em vez disso, mandam-me mensagens com técnicas de fazer ‘tortillas’ de Betanzos.

Mas, a partir daquele dia, comecei a receber no Instagram publicidade e páginas sobre como explorar os pontos de uma mulher, ou os pontos-chave de uma mulher (que pareciam uma cena de shiatsu) para desbloquear o amor.

Terá que ver com aquela conversa do primeiro parágrafo? Uma parte significativa das pessoas a quem estas situações ocorrem dirá que o ‘smartphone’ ouve as nossas conversas.

Os psiquiatras dirão que é o ‘efeito Baader-Meinhof’ (que também acontece, por exemplo, quando andamos para comprar um Maserati e, de repente, parece que começamos a vê-lo em todos os lugares).

Como jurista, não me importa o que dizem os psiquiatras, mas importa-me, sim, o que dizem ‘as pessoas’, porque são elas que, em teoria, podem vir a influenciar o quadro normativo futuro.

Dito de forma simples, em regra, os quadros normativos (ainda que de forma porventura diversa, sejam eles criminais, cíveis ou contraordenacionais) são criados para proteger determinadas preocupações da sociedade. Quer isto dizer que, tradicionalmente, os quadros normativos eram criados depois das preocupações serem prementes, isto é, quando já são preocupações das sociedades e não preocupações isoladas de um qualquer ‘lunático-antes-do-seu-tempo’.

Mas, cada vez mais, há casos em que os legisladores criam quadros normativos quase antes do seu tempo e em que, com esse quadro, conseguem criar verdadeiras preocupações para os cidadãos (os tipos criminais tinham algo parecido quando se começaram a tipificar, por exemplo, os crimes de intenção ou crimes de tendência interna transcendente, que se dizia serem “crimes de cortina fechada”, em que se punia a mera intenção da ação, antes do resultado ou sem que este se tenha que verificar).

Para mim e nas áreas do direito em que trabalho, o exemplo máximo das leis antes do seu tempo é o quadro regulamentar-normativo relativo ao tratamento de dados pessoais. Este direito chama-se Direito à Autodeterminação Informacional. Fixem este nome, porque dá para proezas em jantares com amigos.

Portugal foi dos cinco primeiros países no mundo a ter regras normativas neste domínio, desde logo, no plano constitucional a partir de 1976, com a revisão da Constituição da República Portuguesa (Artigo 35º) – e reforçado nas revisões posteriores – e com uma consagração, no plano legal, em 1991 (com a Lei n.º 10/91).

Fomos dos primeiros no mundo a fazê-lo. E, na altura, alguém se preocupava com estas matérias? Não!

E agora preocupamo-nos? Também acho que não, salvo em situações de tratamentos de dados que nos irritam…

E as empresas? Essas, hoje preocupam-se e muito, mas por causa das multas que o RGPD veio consagrar (toda a gente já sabe o que é o RGPD).

Mas há ainda um nível dentro das empresas a quem estas regras devem preocupar e, mais do que isso, sei-o porque trabalho com pessoas dessas áreas quase todos os dias, onde essas regras são consideradas como abomináveis e uma fonte permanente de chatices: os departamentos de marketing e as pessoas que trabalham e pensam em soluções de comunicação para marcas.

Mas é também o quadro legal que, desde 1991, não permite que os telemóveis ouçam as nossas conversas de amor e apresentem publicidade a sugerir aprendermos sobre os pontos dos corpos dos parceiros ou parceiras. Não, os telemóveis não podem ouvir as nossas conversas.

Sobre o autorPedro Simões Dias

Pedro Simões Dias

Fundador da Comporta Perfumes e advogado de proteção de direitos de marcas
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