Luís Madureira Pires, presidente da comissão de gestão do European Media and Information Fund
“Governo e organizações filantrópicas europeias têm de começar a olhar com mais atenção para os media tradicionais”
Lisboa recebeu, no início do mês, o primeiro encontro anual do European Media and Information Fund (EMIF), criado para financiar projetos de fact-checking, investigação e literacia mediática a nível europeu. Luís Madureira Pires, que preside à comissão de gestão do fundo, a cargo da Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com o Instituto Universitário Europeu, faz um balanço e aponta prioridades
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Lisboa recebeu, no início do mês, o primeiro encontro anual do European Media and Information Fund (EMIF), criado para financiar projetos de fact-checking, investigação e literacia mediática a nível europeu. Luís Madureira Pires, que preside à comissão de gestão do fundo, a cargo da Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com o Instituto Universitário Europeu, faz um balanço e aponta prioridades
Polígrafo, Associação Godinhela e Associação Portuguesa de Imprensa são as três organizações portuguesas que têm atualmente em fase de implementação projetos financiados através do European Media and Information Fund (EMIF), fundo gerido pela Fundação Calouste Gulbenkian e que pretende vir a concentrar o combate à desinformação a nível europeu. “Há muitas vantagens nessa concentração, desde logo pela melhor coordenação de esforços, mas também pelas sinergias e complementaridades que se podem obter entre projetos apoiados”, defende Luís Madureira Pires, presidente da comissão de gestão do EMIF. Em entrevista ao M&P, considera que está a ser desenvolvido em Portugal um trabalho de qualidade ao nível do fact-checking, investigação e literacia mediática. Prova disso, afirma, “é que, do montante atualmente comprometido nos 33 projetos aprovados, 14,5 por cento diz respeito a projetos com liderança portuguesa” e “16,8 por cento a projetos com integração de instituições portuguesas”.
Meios & Publicidade (M&P): O European Media and Information Fund (EMIF) foi criado há cerca de ano e meio, sendo 2022 o primeiro ano completo de atividade. Que balanço faz do trabalho desenvolvido até aqui?
Luís Madureira Pires (LMP): O balanço é muito positivo visto que conseguimos concretizar os três objetivos para este período: montar as estruturas administrativas, financeiras e operacionais e definir o quadro de referência do EMIF, com objetivos, estratégia, prioridades, planeamento dos concursos e respetivas dotações); lançar os primeiros concursos nas quatro áreas de atuação do fundo – verificação de factos, investigação jornalística, investigação académica, literacia mediática – e aprovar os primeiros 33 projetos, abrangendo 21 dos 32 países europeus que são cobertos pelo fundo; e iniciar a construção de uma comunidade de pessoas e entidades que operam e investigam esta área por forma a incentivar abordagens multidisciplinares do combate à desinformação e facilitar a constituição de consórcios para candidaturas.
M&P: Esta iniciativa surge no rescaldo do segundo confinamento em Portugal. Entretanto dá-se também o regresso da guerra à Europa. A pandemia, com toda a desinformação e polarização que gerou, e agora o conflito na Ucrânia, vieram sublinhar a necessidade combater a proliferação de fake news, mitigar o crescimento da desinformação e de tomar medidas para garantir um jornalismo capaz de escrutinar e verificar a informação produzida?
LMP: Com efeito, a pandemia e, logo a seguir, os efeitos das alterações climáticas e da guerra na Ucrânia, vieram amplificar um fenómeno que sempre existiu, mas que cada vez mais influencia, ou manipula mesmo, as nossas ideias, comportamentos e atitudes, constituindo uma ameaça para a democracia e para os direitos humanos. A polarização das nossas sociedades, promovida pelos novos populismos e extremismos e exacerbada por campanhas de notícias falsas, vem criar divisões artificiais e tornar mais difícil o exercício dos consensos, essencial para o funcionamento da democracia. Tudo isto acontece em paralelo com algum desinvestimento nos media tradicionais, no jornalismo de qualidade, o qual tem de continuar a ser uma referência para a nossa defesa contra a desinformação.
M&P: Analisando aquilo que tem sido feito ao nível do governo, considera que essas medidas estão também a ser tomadas ou as políticas públicas têm sido ainda curtas para aquilo que entende serem as medidas necessárias para garantir a defesa do jornalismo enquanto pilar da democracia?
LMP: Tanto o governo como as organizações filantrópicas europeias têm de começar a olhar com mais atenção para o setor dos media tradicionais, com ou sem finalidade lucrativa. Tal como foi referido pelo representante da Fundação Bill & Melinda Gates na nossa conferência anual, não é normal que seja aquela fundação americana a principal organização filantrópica financiadora de jornais europeus, como o Le Monde e outros jornais europeus de referência. Sendo indispensável o jornalismo de qualidade na Europa, a sociedade tem de o encarar como um instrumento fundamental na luta contra a desinformação e, em última análise, na defesa dos valores democráticos e dos direitos de cada um de nós.
M&P: Há uma consciência para a real ameaça que a desinformação representa?
LMP: A desinformação só é verdadeiramente um problema a partir do momento em que influencia os nossos comportamentos e atitudes, o que, face ao desenvolvimento das tecnologias, acontece de forma cada vez mais profunda e inconsciente. Imaginemos o mundo próximo do metaverso, em que a realidade se conjuga com a imersão total dos nossos cérebros na realidade virtual, para anteciparmos um efeito potencialmente muito mais pernicioso e estrutural da desinformação e das notícias falsas. O EMIF dá, por isso, uma grande prioridade ao estudo e investigação deste fenómeno, não só das suas causas, motivações, fatores e meios de propagação, mas também de ferramentas que ajudem as pessoas a defender-se desta ameaça. Porque a desinformação veio para ficar, e porque vai ter cada vez mais impacto nas nossas vidas face à sofisticação tecnológica, temos também de investir na literacia mediática, logo desde a educação pré-primária. Basta vermos o número de crianças que, nessa idade, já fazem do tablet um companheiro habitual.
M&P: Referem que o fundo está aberto a parcerias e donativos. O Google foi um dos parceiros que se juntou a esta iniciativa, tendo anunciado que iria contribuir com 25 milhões de euros para ajudar no lançamento do fundo. É importante ter empresas da área digital a juntar-se a este esforço de combater a desinformação? Esse é um papel que empresas como Google e Facebook não podem, ou não deveriam, descurar?
LMP: Sendo as plataformas de media social os principais propagadores de notícias falsas – visto que todos os cidadãos são produtores, editores e disseminadores de notícias e o fazem nas redes sociais – é natural que estes operadores sintam a responsabilidade perante a sociedade de ajudar a combater este fenómeno. Fazem-no já através de várias ferramentas inseridas nas próprias plataformas mas, face à dimensão do fenómeno e aos próprios limites impostos pela liberdade de expressão, isso não tem sido suficiente. Daí que, complementarmente, optem pelo financiamento de projetos que combatem a desinformação ou capacitem melhor os cidadãos para lidar com o problema. Há várias linhas de apoio que estão abertas nesta área, abrangendo vários continentes. O que gostaríamos, e estamos a trabalhar para isso, é que cada vez mais o combate à desinformação na Europa fique concentrado neste fundo, e que outros operadores se juntem à Google nesta contribuição inicial generosa. Há muitas vantagens nessa concentração, desde logo pela melhor coordenação de esforços, mas também pelas sinergias e complementaridades que se podem obter entre projetos apoiados.
M&P: Em Portugal têm sido vários os meios de comunicação a integrar práticas de fact-checking, além de alguns projetos lançados nos últimos anos exclusivamente com esse propósito, como é o caso do Polígrafo. Que ponto de situação faz do trabalho que está a ser desenvolvido atualmente a este nível em Portugal e como vê as iniciativas que têm sido desenvolvidas?
LMP: Para além do trabalho mais visível para o público, e que tem a ver com a verificação de factos – inclusive com programas ou momentos específicos regulares nas televisões –, verificamos que há também trabalho já nas universidades portuguesas e que a articulação de jornalistas, académicos, fact-checkers e organizações não governamentais – um dos objetivos do EMIF – já está a ter lugar em Portugal. E a prova de que este trabalho é de qualidade é que, do montante atualmente comprometido nos 33 projetos aprovados, 14,5 por cento diz respeito a projetos com liderança portuguesa – a maioria dos projetos do EMIF obriga à constituição de parcerias ou consórcios – e 16,8 por cento a projetos com integração de instituições portuguesas (líderes ou parceiras). De notar que os projetos são avaliados por júris independentes e internacionais estabelecidos pelo Observatório Europeu para os Media Digitais (EDMO), nosso consultor científico.
M&P: Que tipo de projetos têm vindo a apoiar ao longo deste ano?
LMP: Quando foi criado, o EMIF propôs-se apoiar quatro tipologias de projetos, tendo em conta o diagnóstico que foi feito inicialmente e a necessidade de garantir impacto na sua atuação: verificação de factos (projetos até 80 mil euros, com duração máxima de 12 meses); investigações multidisciplinares sobre desinformação (projetos até 130 mil euros, com duração máxima de 12 meses); investigação (projetos até 400 mil euros, com duração até 18 meses); e literacia mediática (projetos até 400 mil euros, com duração até 18 meses). Em cada concurso são definidas de forma mais fina as tipologias a apoiar, de acordo com as prioridades identificadas pelo conselho científico do EDMO.
M&P: Qual o valor disponibilizado pelo fundo e qual o montante que já foi aplicado em projetos concretos? E como é feita a distribuição e avaliação dos montantes a atribuir a cada tipo de projeto?
LMP: Nos quatros concursos até agora abertos – para fact-checkers em novembro de 2021 e para as restantes áreas em fevereiro de 2022 – aprovámos 33 projetos em 21 países europeus. Isto corresponde a 5,75 milhões de euros de financiamento, sendo que o apoio concedido pelo EMIF corresponde a 100 por cento das despesas elegíveis, não havendo necessidade de cofinanciamento pelo promotor. Os estatutos do fundo preveem desde logo um equilíbrio de dotações entre as suas quatro áreas de atuação e a obrigatoriedade de apoiar um mínimo de 12 países em cada ano.
Com base nestas premissas, o Comité de Gestão do EMIF – que integra também um representante do Instituto Universitário Europeu de Florença e uma perita independente – definiu um quadro de referência para os primeiros cinco anos de vigência do fundo, o qual foi validado pelo Observatório Europeu que nos presta consultoria científica, o EDMO. É neste documento que estão definidas as tipologias de projetos a apoiar, os montantes máximos de apoio e as afetações indicativas de verbas por área.
M&P: No caso de Portugal, referiu que já existem projetos em curso a beneficiar do apoio deste fundo. Na conferência anual foi apresentado o caso da Associação Godinhela. É o único ou existem outros em fase de implementação? Em que consiste esse projeto?
LMP: Temos atualmente três projetos apoiados, liderados por organizações portuguesas: Polígrafo, Associação Godinhela e Associação Portuguesa de Imprensa. Há, para além disso, um projeto da Universidade Autónoma de Barcelona que envolve a Universidade Nova de Lisboa. O projeto “Using micro-learning to train educators – a cascade approach to media and information literacy”, promovido pela Associação Godinhela, parte do diagnóstico, agravado pela pandemia da covid-19, de que uma crescente parte da população está vulnerável aos efeitos da desinformação e excluída das cada vez mais necessárias competências digitais. Para responder a este problema, o projeto propõe-se intervir seguindo um modelo multiplicador, quer através de ações para ensinar quem ensina dirigido a profissionais de diferentes contextos de aprendizagem (informal, não-formal, para adultos ou grupos vulneráveis), quer através do desenvolvimento de uma ferramenta digital de aprendizagem lúdica e baseada em jogos. A parceria inclui instituições de Espanha, Itália e Suécia.
M&P: E os projetos do Polígrafo e da APImprensa?
LMP: O projeto “FACTUAL Fact-checking Climate Changes”, promovido pela Inevitável e Fundamental, tem como base o trabalho anteriormente desenvolvido pelo Polígrafo e é um projeto de fact-checking que pretende incorporar especialistas externos e desenvolver ferramentas de inteligência artificial para melhorar a verificação de factos, quer do ponto de vista de especialização temática, com enfoque nas questões ambientais e nas alterações climáticas, quer do ponto de vista da compreensão e mitigação do fenómeno das campanhas de desinformação. Quanto ao projeto “Yo-Media: Youngster’s Media Literacy in Times of Crisis”, promovido pela APImprensa e focado na literacia mediática, escolhe como público-alvo a população jovem dos 12 aos 18 anos, partindo da ideia de que é fundamental a sua participação consciente no mundo digital. Para isso, o consórcio propõe-se criar um jogo que permita aos jovens, através de experiências simuladas, desenvolver ferramentas de pensamento crítico e de literacia para os media ao avaliar a fiabilidade de informação disponível em tempos de crise. Adicionalmente serão desenvolvidas ferramentas pedagógicas e formações para a comunidade educativa formal e não-formal. O consórcio inclui parceiros em Espanha e Itália.
M&P: Têm recebido mais candidaturas de projetos nacionais? Há projetos em fase de avaliação e perspetivas de virem a apoiar mais iniciativas a nível nacional?
LMP: Até ao momento recebemos oito projetos liderados por instituições portuguesas (num total de 108), dos quais três foram aprovados (em 33). O modelo de concursos adotado pelo fundo é o seguinte: para a área de verificação de factos um concurso permanentemente aberto, com momentos de avaliação em fevereiro, junho e outubro de cada ano; para as restantes três áreas (investigação jornalística, investigação académica, literacia digital), um concurso anual – em 2022 abriu em janeiro e em 2023 está programado o lançamento para o final de janeiro. Os projetos portugueses são instruídos e avaliados em igualdade de condições com todos os outros, pelo que será de esperar que novos projetos venham a ser aprovados nos próximos anos, assim a qualidade o justifique.
M&P: Quais os principais critérios e fatores decisivos para a escolha dos projetos a apoiar?
LMP: Os critérios de seleção estão identificados nos avisos de cada um dos concursos lançados, bem como a respetiva ponderação e o modelo de avaliação. Os quatro grandes critérios genéricos são a relevância e caráter inovador do projeto para os objetivos definidos em cada concurso, a qualidade das atividades e metodologias propostas, a capacidade de gestão e as formas e alcance da disseminação dos resultados.
M&P: Que lacunas identifica no panorama português ao nível do combate à desinformação? Que tipo de projetos ou iniciativas/medidas mais considera fazerem falta nesta altura?
LMP: Dado que a desinformação vai entrar nas novas vidas de forma cada vez mais sofisticada, face à evolução da tecnologia, penso que deveríamos apostar na literacia digital para todos. Ainda que não tenha a sensação de que tenhamos vivido em Portugal grandes campanhas de desinformação – tanto na esfera económica como política – como noutros países (teremos porventura sido mais agentes passivos de campanhas promovidas externamente), parece-me também que podemos posicionar-nos na linha da frente da investigação nesta matéria, face à qualidade do nosso ensino superior e dos nossos investigadores.
M&P: Numa altura em que vamos entrar no segundo ano de atividade do fundo, quais são as prioridades?
LMP: O encontro do passado dia 2 serviu sobretudo para recolher experiências e ideias, tanto de especialistas como de profissionais e beneficiários do Fundo, para realinhar as nossas prioridades para os próximos concursos, a lançar no início do próximo ano. Dado que a Comissão de Gestão do EMIF está agora a digerir toda a informação recolhida, preferia não avançar muito nessa matéria. De qualquer modo, a ideia de que se deve dar menos prioridade à inovação e mais à replicabilidade e escalabilidade dos projetos, por forma a ser mais racional na aplicação dos recursos e aumentar o impacto do fundo, foi uma das mensagens pertinentes do debate. Como sempre, o EDMO terá também uma palavra relevante a dizer na seleção das prioridades para os próximos concursos.