A verdade da mentira
‘The First Speech’ (na foto), da Innocean Berlin para os Repórteres Sem Fronteira, é a campanha que o brasileiro Rodrigo Cardoso, diretor criativo da McCann Lisboa, gostaria de ter feito, ao passo que ‘O Que Travou Chuck Norris’, da Artplan para a TIM Brasil, é a que mais se orgulha de ter cocriado

Luis Batista Gonçalves
As contradições entre o que os líderes Vladimir Putin (Rússia), Recep Tayyip Erdogan (Turquia) e Nicolás Maduro (Venezuela) afirmam nos discursos, e as decisões políticas que depois tomam, são exploradas nos três filmes de ‘The First Speech’, campanha que a Innocean Berlin concebeu para a filial alemã dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e que Rodrigo Cardoso, diretor criativo da McCann Lisboa, gostaria de ter feito, como revela em Como É Que Não Me Lembrei Disto?, rubrica do M&P.
A campanha de que mais se orgulha tem como protagonista o ator norte-americano Chuck Norris, que cedeu o rancho onde reside, no Texas, para a gravação de um anúncio da operadora de telecomunicações italiana TIM, no Brasil, idealizado pela Artplan.
Qual é a campanha publicitária que gostaria de ter feito?
Todos os anos surgem novas ideias e aparecem campanhas que gostava de ter feito. Uma das últimas que me despertou a atenção ao ponto de a incluir nesta lista é ‘The First Speech’, uma campanha para a Reporter Ohne Grenzena, a delegação alemã dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
Quais são as razões dessa escolha?
Acima de tudo, porque tem subjacente uma ideia extremamente verdadeira. Só por isso já me conquista. Especificando mais um pouco, gosto da forma como a campanha cria um confronto entre o discurso político e a realidade. A campanha expõe a mentira e a falsidade que existem por detrás de uma coisa que, à primeira vista, até parece honesta e bem-intencionada.

Os filmes publicitários de ‘The First Speech’ retratam o quotidiano de cidadãos de diferentes extratos sociais
O que lhe chama mais a atenção na campanha?
É uma daquelas campanhas que tem todos os elementos no sítio certo. Isso é o que mais me desperta a atenção. Os discursos são reais e vemos pessoas em situações do quotidiano a ouvir os políticos retratados. Como não sabem que aquelas supostas verdades que lhes estão a ser apresentadas são, no fundo, mentiras, mostram-se impreparadas para questionar o que lhes está a ser dito. Toda a relação entre as imagens e o texto é construída para reforçar a intenção da campanha.
Essa campanha inspira-o a nível criativo?
Recorrer a um conceito verdadeiro para dar um novo sentido ao que está a ser mostrado e, dessa forma, subverter as expetativas das pessoas é uma maneira inteligente de fazer publicidade. E isso inspira-me.

Rodrigo Cardoso, diretor criativo da McCann Lisboa, escolhe a campanha ‘The First Speech’
Qual é a campanha que fez que mais o concretizou profissionalmente?
Um dos trabalhos que mais me realizou foi uma campanha publicitária criada para a operadora de telecomunicações italiana TIM, no Brasil, com o ator Chuck Norris. Uma campanha integrada que foi muito bem-sucedida, num momento em que essa realidade ainda não era comum. Além de prémios, gerou resultados muito além das expetativas do cliente.
Como é que chega a essa ideia e avança para a execução?
A TIM tinha uma forte presença no Brasil e queria lançar um serviço de internet rápida com impacto em diversos meios. Há 11 anos, as campanhas de 360º já eram uma ambição dos clientes, mas viam-se pouquíssimas. Precisávamos, por isso, de uma ideia que resultasse em televisão, mas que também tivesse força no digital. Foi assim que nasceu a ideia de criar uma campanha com o Chuck Norris.
Porquê o Chuck Norris?
Na altura, os ‘Chuck Norris facts’ eram um fenómeno da internet. Faziam parte da cultura popular. Para os que não sabem ou não se recordam, os ‘Chuck Norris facts’ eram afirmações absurdas, que apresentavam o ator de forma sarcástica e exagerada, como uma pessoa invencível, como um super-herói capaz de feitos incríveis. Tínhamos, de um lado, um ator muito famoso e, do outro, um tipo de humor que funcionava muito bem no universo digital.

O ator norte-americano Chuck Norris recebeu a equipa de filmagens da Tycoon Estúdios no rancho onde reside
Como é que materializaram a ideia?
O que fizemos foi pegar na marca e compará-la diretamente com o Chuck Norris. O tom irónico da campanha foi um sucesso.
As campanhas estão mais ou menos criativas do que anteriormente?
A publicidade mudou muito, mas não acho que seja menos criativa nos tempos que correm. A verdade é que, atualmente, podemos ser ainda mais criativos. Continuamos a ter filmes, anúncios e media tradicionais, mas também temos um mundo de novas oportunidades. Há conceitos tecnológicos que são ótimos exemplos de criatividade publicitária. Existem ideias que nem sequer têm um formato específico e que são bons conceitos publicitários.
Pode dar alguns exemplos?
A app Samsung Impulse, desenvolvida para o Samsung Watch e premiada em Cannes o ano passado. Através do ritmo das vibrações, ajuda pessoas que gaguejam a falar melhor. Basta escreverem o que querem dizer e a app define o ritmo da fala.
Outro exemplo que não tem um formato específico e é um grande trabalho publicitário, chama-se ‘The Bread Exam’, da McCann Health, que também ganhou um Grande Prémio em Cannes. Essa campanha, feita para o Líbano, ensinava as mulheres a fazer o autoexame da mama para detetar sinais precoces de cancro.
As imagens mostravam os gestos a serem feitos em massa de pão, porque, num país com leis muito rígidas, onde mostrar o corpo feminino é um crime grave, essa foi a maneira que os criativos encontraram para poderem transmitir a mensagem.

Rodrigo Cardoso recorreu ao fenómeno da internet para cocriar a campanha ‘O Que Travou Chuck Norris’
É a favor de campanhas desenvolvidas integralmente com recurso a inteligência artificial (IA)?
Sou a favor de qualquer ferramenta que nos ajude a fazer um bom trabalho. E aqui é que está o ponto. A IA é uma ferramenta. A utilização que fazemos dela é muito mais relevante do que a ferramenta em si. Quem trabalha com criatividade sabe que o que faz a diferença não é a máquina, é a pessoa que está por trás dela. Sempre foi assim com os computadores, está a acontecer agora com a IA e vai ser sempre assim com qualquer nova tecnologia que apareça.
Não teme que a criatividade artificial se sobreponha à humana?
É claro que há muita coisa que ainda vai mudar com a IA e as mudanças, por norma, assustam. Mas o importante é abraçá-las e saber aproveitar o lado bom que trazem. É isso que procuro fazer. E também é fundamental regulamentar o uso das novas tecnologias, para proteger as pessoas e o mercado.
O que faz quando não tem ideias?
Não ter ideias gera tensão, e a tensão é a maior inimiga da criatividade. Pelo menos para mim. É por isso que, quando as ideias não aparecem, agarro-me ao humor, às piadas e à descontração. Nessa altura, faz bem deixar o ‘briefing’ de lado durante um breve período, para voltar a olhar para ele, depois, já com a cabeça mais leve. Para mim, criar tem de ser uma atividade lúdica. Tem de ser uma coisa divertida, acima de tudo. Escolhi esta profissão porque é divertido criar.
Ficha técnicaCampanha ‘The First Speech’ |
Ficha técnicaCampanha ‘O Que Travou Chuck Norris’ |