“Gosto de me meter em coisas que não sei se consigo fazer”
Em entrevista ao M&P, numa das raras que tem dado nos últimos anos, Leonel Vieira, realizador, guionista e produtor, fala dos projetos que tem em mãos para cinema e televisão e analisa a mudança de paradigma gerada com a chegada das plataformas de ‘streaming’
Luis Batista Gonçalves
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Com projetos em Portugal, Espanha, França e Brasil, Leonel Vieira volta a dar prioridade àquilo que mais gosta, escrever e filmar. Afastado da publicidade há cinco anos, por causa do stresse e da angústia que lhe causava, abriu uma exceção para gravar o filme institucional que assinala os 70 anos da FEP. Em entrevista ao M&P, o realizador, guionista e produtor executivo da Volf Entertainment, explica por que razão aceitou o convite, analisa a mudança de paradigma que as plataformas de ‘streaming’ vieram gerar e antecipa a evolução do setor.
A Faculdade de Economia do Porto (FEP) desafiou-o a fazer um filme institucional para assinalar os 70 anos da instituição. Tendo em conta que tinha deixado de fazer publicidade, qual foi o aliciante para aceitar o repto?
O filme da FEP surgiu por causa de um convite do professor Óscar Afonso, que viu uma curta-metragem que fiz para a promoção turística de Monção, um dos filmes que mais gostei de fazer ao longo da minha carreira e que ganhou muitos prémios. Ele sugeriu-me fazer um filme diferente, que comemorasse a trajetória da FEP. O desafio foi fazer um filme que não se parecesse em nada com os das maiores universidades do mundo, em que a maioria tem filmes institucionais.
Ficou claro, tanto da parte do professor Óscar Afonso como da minha, que só fazia sentido fazer uma curta-metragem que fosse um filme artístico, que não fosse um institucional típico. Foi esse desafio que me fez aceitar. Se não fosse assim, provavelmente não aceitaria fazê-lo, porque não gosto de fazer institucionais.
Em que é que se inspirou para fazer um filme institucional diferente?
Procurei fazer, de uma forma artística, um filme que fizesse justiça à modernidade, ao impacto e ao posicionamento da FEP. Uma das coisas que me inspirou bastante foi o fabuloso edifício onde eles estão instalados, pela arquitetura. Quando o fui visitar, percebi que era uma obra de arte e que partiríamos dele para contar uma história.
Isso foi um desafio, porque esta curta-metragem pretende ser um institucional, mas não é um institucional típico. Tenta ser um filme que pisca o olho ao cinema, que tem claramente um aspeto visual e uma atitude cinematográfica. Tem uma estética muito próxima do cinema, muito afastada do institucional.
Era o que pretendia desde o início?
Vi uma grande quantidade de institucionais de todas as grandes universidades de Inglaterra e dos Estados Unidos. Achei que eram todos muito simples e básicos, todos muito parecidos, pequenos vídeos promocionais com registos de alunos na universidade, em caminhadas. Não era nada daquilo que eu queria fazer e o professor deu-me toda a liberdade para fazer um filme em que acredito.
É um projeto pelo qual tenho grande carinho, tal como o que fiz para Monção, porque foram dois projetos muito livres. Deixei de fazer publicidade há cinco anos e, de vez em quando, gosto de fazer estes projetos, que utilizam toda a minha bagagem e a experiência dos 10 anos em que fiz publicidade, mas, acima de tudo, dão-me a liberdade e possibilidade de utilizar o cinema dentro destes filmes.
A publicidade é menos desafiante ou considera-a um trabalho menor?
Tem pouco desafio artístico. A minha paixão verdadeira é a ficção. Eu gosto de fazer ficção, cinema e séries. Esse é que é o meu território. Fiz muita publicidade durante 10 anos, depois de já ter feito cinema e séries. Gosto é de dirigir atores e criar cenas com dramaturgia. Os institucionais não me desafiam nem me moralizam para filmar.
Arrancou, a 22 de julho, com as gravações de um novo filme para a RTP. O que é que já se pode saber sobre este projeto?
O último filme que fiz foi ‘O Último Animal’, que rodei no Rio de Janeiro, um ‘thriller’ realista, muito forte, muito cru. Agora, volto ao território da comédia, depois do grande sucesso que foi ‘O Pátio das Cantigas’, que é até hoje o maior sucesso de cinema em Portugal, não só nas salas, mas também em televisão.
É um filme que só me deu alegrias. Dez anos depois, é um dos filmes portugueses mais vistos nas plataformas. Durante este tempo, fui sempre desafiado a voltar a fazer outra comédia, coisa que nunca quis. Recusei durante algum tempo, embora pensasse sempre voltar a um filme que recuperasse esse espírito, mas tinha de me trazer algum desafio.
Qual é o desafio?
Vou misturar géneros. Vou fazer uma comédia musical que pisca o olho à comédia dramática. Não é um musical típico. Tem cenas emocionais, mas é uma comédia que me permite trabalhar num registo um bocadinho diferente do que foi ‘O Pátio das Cantigas’ ou ‘O Leão da Estrela’. Gosto de me meter em coisas que não sei se consigo fazer. Foi por essa razão que fiz as comédias, porque achava que não conseguia filmar comédias.
Era o género que menos dominava. Só as fiz por porque representava um desafio tremendo fazer comédias que funcionassem. E as comédias que funcionam são as que têm público. As comédias não são feitas para os festivais de cinema. Para minha surpresa, dei-me conta que, afinal, dei conta do recado. O público gostou das duas que fiz.
Com que atores é que está a trabalhar nesta nova comédia?
Tenho um elenco espetacular. Os quatro protagonistas são a Sara Matos, a Ana Guiomar, o Manuel Marques e o José Pedro Vasconcelos. Depois, tenho um elenco secundário absolutamente fantástico, com participações de muita gente, como a Alexandre Alencastre, o Aldo Lima, a São José Lapa, o Carlos Cunha, o Gilmário Vemba, o Carlos Areia, o Joaquim Nicolau, o José Pedro Gomes, o José Martins e o João Baptista. O José Raposo faz uma grande personagem. O Nilton também participa. O elenco é muito forte.
Estreia ainda este ano?
Estreia no primeiro semestre do próximo ano, nas salas de cinema. É uma parceria com a Nos Audiovisuais. Mais para o final do ano, poderá ser visto na RTP. Acredito que depois, à semelhança dos outros filmes que foram vendidos para as plataformas, irá parar à Netfix, à Prime Video e à Max.
Já sabe o que vai fazer a seguir a esse filme?
Estou a trabalhar em outras coisas, mas tenho como filosofia só falar dos projetos que tenho em produção. Acabámos de rodar uma série de crimes para a Max, para RTP e para um canal de televisão espanhol. É uma série espanhola com coprodução portuguesa que acabámos de filmar há 15 dias.
É uma grande série de crimes que se chama ‘Faváritx’ e está em montagem. Conta com a participação do Pêpê Rapazote, da Benedita Pereira, da Catarina Carvalho e do Adriano Luz. É uma série que fica pronta no final do ano, para estrear no início do próximo ano.
Há 20 anos estava a fundar a Stopline, uma das suas produtoras. O mercado evoluiu de uma forma muito diferente da que perspetivava na altura?
A chegada das plataformas de ‘streaming’ não era algo que antevíssemos há 20 anos. O mercado cresceu, aumentaram as oportunidades e abriram-se possibilidades de internacionalização dos produtos, que não tínhamos. Os países pequenos não tinham qualquer chance de vender séries nem filmes.
Só se vendiam os filmes de autor quando ganhavam festivais, mas era para circuitos pequenos, circuitos de autor. Entretanto, mudou muita coisa. Apanhámos crises que fizeram regredir os investimentos, a maior crise financeira da história, uma pandemia e duas guerras.
Têm sido muitas as adversidades?
Quando comecei, na década de 1990, vivia-se um bom momento. Entrei no mercado num momento de crescimento económico. De repente, aparece uma crise, os financiamentos, que eram na ordem dos 50% na maior parte dos casos, foram reduzidos. Andámos muitos anos para trás.
As crises económicas geraram um grande desinvestimento. Depois, num segundo ciclo, dá-se outro fenómeno, o desgaste dos canais abertos. Durante muitos anos, as televisões abertas privadas cresciam e geravam oportunidades, ao contrário do que sucede hoje, em que estão em declínio por causa das plataformas.
Antevia essa situação?
Percebi isso muito cedo, há uns 10 anos, por causa do Brasil e de Espanha, onde passo muito tempo. Quando vi a Netflix produzir a série ‘3%’ no Brasil, há muitos anos, disse logo que o mundo ia mudar. Pensei que, se eles iam investir no mercado internacional, haveria de seguida mais gente a fazê-lo. Percebi que, a médio prazo, aquilo iria ser o futuro da indústria de televisão e até de cinema. Não me enganei, mas foi necessário passar muitos anos para esse efeito positivo chegar a Portugal.
Ficamos sempre para trás?
Somos um pequeno mercado, olham sempre para nós no fim. Aliás, só olham para nós quando são obrigados a investir. Nunca somos um mercado natural para uma empresa audiovisual investir e até o compreendo. Em Espanha e no Brasil, após um boom, já estão numa fase de recessão, a reajustar investimentos. Os primeiros investimentos da Netflix e das outras plataformas só agora é que estão a chegar cá e estou a trabalhar com elas.
Com todas as que estão a investir em Portugal?
Tenho projetos com algumas. Só agora é que estes investimentos chegaram a Portugal e, como tal, vivemos um momento um bocadinho menos mau do que outros mercados. Está a haver este ano uma recessão no Brasil em termos de plataformas.
Em Espanha e em outros mercados, há um reajuste, porque a concorrência aumentou nos últimos dois anos. Estamos a assistir a uma consolidação do mercado internacional. Já não se investe desenfreadamente. Tem de se começar agora a justificar o investimento e a trabalhar para aumentar as margens de lucro.
O que é que isso muda em termos de negócio?
O mercado vai continuar a crescer, mas moderadamente porque nestes últimos 10 anos foi a corrida ao ouro, uma coisa atípica, não era natural. Ia tudo a reboque do efeito agressivo da Netflix, que estava a conquistar um mercado internacional como um buldózer. As outras plataformas tiveram de entrar em força nos mercados, porque senão não tinham lugar.
Isto desorientou o mercado em termos de investimento, mas também trouxe muita oportunidade e muito produto bom. Mas, como tudo, são plataformas que pretendem ter uma programação generalista. Já percebemos isto. É para aí que isto vai caminhar.
Portugal está preparado para dar resposta às solicitações que surgem com o investimento das plataformas de ‘streaming’?
A pergunta eterna é quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Nunca sabemos responder com alguma idoneidade. Tem de se começar por algum lado. Se não aparecerem as oportunidades, não vamos criar uma indústria, porque o investimento não vem do Estado.
É preciso que apareçam oportunidades e o mercado vai saber dar resposta, com as suas deficiências e limitações ao início, porque não está preparado, como os de outros países. Nunca tivemos grandes oportunidades, nem grandes orçamentos, nem grandes possibilidades para poder praticar, mas vamos sabendo dar resposta.
Temos atores em quantidade e qualidade suficiente para fazer face à procura crescente?
Para um mercado pequeno como o português, temos. O nosso mercado é idêntico ao da Catalunha, porventura mais saturado, e a Catalunha é uma região com um poder económico muito maior do que Portugal, com um dos maiores PIB da Europa. Normalmente, um mercado pequeno como este não aceitaria tantas produções.
Temos muitos realizadores e muitíssimos atores, mas há momentos em que aparecem produções estrangeiras por causa dos incentivos fiscais de rodagem do PIC Portugal e do Cash Rebate e o mercado fica sobrecarregado. Eles chegam cá e pegam nas melhores equipas que temos, que precisam de trabalhar o ano todo.
São necessários mais meios ou os que temos vão dando resposta?
Estamos a dar resposta, a formar pessoas e estão a surgir novos técnicos bons. Mas gera-se um desequilíbrio que cria um problema para a produção local, por causa das tabelas de preços, em termos da procura e da oferta, que não é acompanhado pelo investimento local. Os técnicos podem pedir mais porque há quem paga, mas a produção local não deu esse salto.
A RTP tem feito um esforço muito grande para acompanhar essa evolução. É graças à RTP que esta indústria sobrevive, é preciso dizer isto. Tem um papel crucial, como a TVE em Espanha. Tem-nos permitido ter uma produção diversificada e regular. Esperamos que continue a fazer esse esforço.
O orçamento da RTP é determinante?
Espero que as dotações orçamentais permitam que se continue a evoluir, porque ainda temos um dos valores de produção de entretenimento por hora mais baixos da Europa, se não o mais baixo. Já é mais baixo do que o da Grécia.
Precisamos de aumentar o valor de investimento por hora para melhorarmos a qualidade dos nossos produtos, senão o espetador vai notar sempre uma diferença. Uma série como ‘Game of Thrones’ custa €10 milhões por hora, ‘A Casa de Papel’ custa €2,5 milhões por 45 minutos e uma série portuguesa como ‘O Crime do Padre Amaro’ custa €200 mil por hora.
Como é que se compete com isso?
Não é o talento que resolve isto. Temos desafios pela frente, mas também oportunidades, porque felizmente abriram-se janelas, que espero que se mantenham e que continuem a crescer. Em Portugal, a transposição da diretiva europeia das plataformas de obrigação de investimentos foi feita há três ou quatro anos.
Desde essa altura que estamos a querer começar a ter esses investimentos, paulatinamente, sem muita pressa, mas isto devia aumentar as produções, porque num país que produza 10 projetos, se aparecerem mais três, a produção aumenta 30%. Hoje, a TVI já produz séries, o que representa mais uma vitória. A SIC também já o estava a fazer. A RTP já as produz há bastantes anos, de uma forma bastante regular, produz entre 10 a 14 séries por ano.
As perspetivas são animadoras?
Com a chegada das plataformas e com o PIC Portugal e o Cash Rebate, a produção e o trabalho aumentaram, com a possibilidade de produtores portugueses participarem em projetos estrangeiros. Assim de repente, voltámos a viver uma primavera. Ando aqui há quase 30 anos, comecei a filmar em 1996, já acompanhei os diferentes períodos destas três décadas e confesso que vejo com um olhar muito positivo o momento que estamos a viver, se todos fizermos as coisas bem. Porque as plataformas estão a entrar cá, mas podem retirar-se.
Em termos de meios técnicos e recursos humanos, estamos a conseguir dar resposta ao aumento da procura?
Faltam-nos chefes de setor com muita experiência no campo artístico. Temos alguma dificuldade em encontrá-los. Estão-se a formar cada vez mais técnicos, mas os de base formam-se mais rápido. Formar assistentes de produção é fácil, difícil é formar diretores de arte, que não se forma de um ano para o outro.
É difícil formar um primeiro assistente de realização, um bom montador, que assegure uma montagem com segurança. Também é difícil formar um diretor de fotografia que trabalhe bem em ficção de séries de televisão com a exigência da qualidade cinematográfica. Há alguma carência no campo da arte, da direção de arte, dos figurinos e dos primeiros assistentes da realização.
Este crescimento do mercado está a demonstrar-nos que temos falta de recursos, mas temos de os formar. Temos de ter consciência que é preciso dar oportunidades aos segundos melhores, para que evoluam para os primeiros lugares.
E em termos de guiões e de ideias?
Também escrevo e agora voltei a escrever guiões. Antes de ser realizador sou guionista. Em 1994, escrevi um guião e, em 1995, vendi-o. O meu primeiro trabalho profissional é como guionista. Depois filmo esse guião, quando faço um contrato como realizador. Estudei em Espanha, onde vivi sete anos, numa grande escola de cinema espanhol, de currículo americano, que formou muita gente conhecida no mercado.
É um mercado que conheço bem. O meu pai é espanhol e sou metade português metade espanhol. Sempre notei que Portugal investiu pouco na formação de argumentistas. Nas escolas e nas universidades, esse ensino sempre foi muito precário, não existia. Os organismos públicos, como o ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], também nunca investiram em guionistas.
Na altura em que fui presidente da Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual, disse que era preciso deslocalizar dinheiro para a escrita, porque precisamos de formar muitos guionistas, mas, para isso é preciso tempo e recursos.
Porque é que não foi feita essa aposta?
Temos seres humanos com talento, isto é ponto assente. Portugal é o meu país, tenho um enorme orgulho em ser português. É cá que trabalho maioritariamente. Os portugueses são um povo tremendo, capaz de tudo, mas temos de ser objetivos e perceber onde é que existem carências. A carência foi sempre nos argumentos, os guiões. O ICA sempre financiou realizadores, mas nunca privilegiou os guionistas.
A maioria dos realizadores em Portugal também preferem ser argumentistas dos próprios filmes. É sabido que somos um dos países da Europa que mais cinema de autor produz. Essa situação também limita a formação, porque acaba por não haver lugar para surgirem guionistas independentes. Estivemos muitos anos distraídos com isto, não os formámos, e hoje temos essa carência.
É uma situação que se poderá mudar a médio prazo?
Há mecanismos novos que estão a surgir. As plataformas, as televisões, as séries e um mecanismo que agora o ICA tem para financiar guiões. Esse mecanismo, que eu preconizei há 30 anos que deveríamos ter, é bom e está a produzir efeitos. Vai dar bons resultados, já está a dar, mas tem a ver com o investimento e, aí, há ideias. Não há é quem as saiba escrever com a carpintaria certa.
Temos poucos, mas bons ou nem sequer isso?
Incluo-me no grupo, porque estou a escrever outra vez. Temos poucos, ainda não temos muitos bons. Há exceções, mas não se pode generalizar. Quando isto melhorar, como melhorou na Argentina há uns anos, a nossa indústria vai dar um salto grande. Agora, estamos numa fase muito engraçada, em que começamos a ter muitos guionistas.
Daqui para a frente, vai fazer-se uma triagem e vão distinguir-se os muito bons, que precisam de ter a possibilidade de escrever, de se desafiar e de se corrigir. O processo é igual ao da pintura, da escultura, do bailado ou da realização. Em breve vamos começar a ter uma colheita. Há exceções, há alguns guiões bons, mas são só alguns. Não acho que haja algum argumentista que só ponha cá fora guiões bons ou muito bons. Digo nós porque estou dentro do grupo, ando nessa luta também.
Tem no seu currículo filmes que bateram recordes de espetadores, como é o caso do ‘Zona J’ e de ‘O Pátio das Cantigas’, que é a longa-metragem nacional mais vista de sempre. Esse êxito foi gerando pressões no sentido de se superar em cada projeto?
Não, nada. Sou uma pessoa com ansiedade zero. Foco-me em cada projeto que estou a fazer. Quem me conhece sabe que sou muito exigente. Às vezes, até difícil de aguentar no trabalho, porque trabalho muito, muitas horas, porque acho que é tudo o que podermos fazer tem de ser feito nessa fase.
As pessoas acham que acerto muitas vezes, porque tenho bastantes êxitos. Algumas até já me perguntaram qual era a fórmula. Respondo sempre que se soubesse qual era ficava muito feliz. Mas não sei. Invento e sigo o que a minha intuição me diz.
A sua intuição já o traiu?
Talvez seja uma presunção minha, mas quando estou num determinado projeto, acho que sei que uma grande parte do público vai gostar de ver aquilo. Umas vezes acerto, outras não. Mas acerto bastante. Tenho visibilidade pública por ter acertado bastante vezes, mesmo em televisão.
Os meus projetos tiveram sempre muita audiência em televisão, mas também me desafio a chegar ao público. Nisso, sou um pouco egoísta. Deixo o meu cinema de sonho de lado e dedico-me muito a um cinema para construir um público.
É esse o segredo do seu sucesso?
Quando cheguei de Espanha, após os estudos, fiquei muito triste porque percebi que não havia um público em Portugal. Vinha de um país que tem uma base de público grande, tal como o Brasil. Chego a Lisboa, começo a conhecer o setor e fico deprimido. Ninguém queria distribuir os filmes, que eram exibidos em três salas.
Era um miúdo. Saí de Miranda do Douro, fui para Porto estudar artes plásticas e, depois, fui para Madrid. Não sabia como é que a indústria era aqui. A indústria não, o setor. Não se pode chamar indústria, porque nunca houve uma indústria aqui. Quando descubro o setor, vi que não existia, que não tinha público. Sempre que íamos a uma reunião, éramos maltratados, desprezados.
O que é que fez para mudar isso?
Tomei uma decisão cedo, quando fiz ‘A Sombra dos Abutres’, que é o meu filme mais autoral. Emigrava ou construía um público. Decidi construir um público. A minha luta, ao longo dos anos, tem sido esta.
O que é que falta ao cinema português para atrair mais público?
Falta haver mais pessoas a tentar, de forma exigente, falar para o grande público. Se houver mais realizadores e produtores a fazerem isto, garanto que se consegue. Há é poucos.
O cinema, em termos de mercado publicitário nacional, só atrai 1% do investimento dos anunciantes. O que é que isto significa?
É um reflexo do impacto que o nosso cinema tem no público, que é nenhum. Já fiz grandes acordos publicitários para filmes, os maiores acordos que já se fizeram em Portugal. Os filmes que faço têm todos acordos de investimento em publicidade. O primeiro foi com a Salvador Caetano, no ‘Zona J’. No ‘Filme da Treta’ foi com a Cofidis. Para ‘A Selva’, fiz um com a Galp. Se houvesse mais produtores a fazer o que eu faço, esse número não era 1%, era bem mais elevado.
Para o novo filme, que acordos publicitários já estabeleceu?
Ainda não posso revelar. É algo que iremos anunciar mais para a frente.
Deixou de fazer publicidade há cinco anos. Porquê?
Cansei-me do stresse que a publicidade me causava. A publicidade é uma profissão de maratonista e, a mim, gerava-me ansiedade. Tinha possibilidade de opção, porque nunca deixei de fazer filmes e séries. Fui o primeiro produtor e realizador a fazer séries com regularidade. Quando comecei, ninguém fazia séries em Portugal. Quando fiz ‘Conexão’ para a RTP, em 1998, ninguém queria séries, mas deixavam-me fazer uma por ano.
Estava à frente do seu tempo?
Até isso percebi mais cedo. Há 12 anos disse a um grupo de pessoas que as séries haveriam de voltar a ser exibidas em horário nobre. Disseram-me que não, que Portugal nunca deixaria de exibir telenovelas. Insisti e hoje reconhecem que tinha razão. A publicidade foi um momento, uma oportunidade que surgiu. Quando surgiu a crise económica e imobiliária, percebi que viria a faltar dinheiro na televisão e nos institutos, como veio a suceder.
Como o meu nome já era relativamente conhecido no mercado, fiz constar que gostaria de experimentar fazer publicidade. Três dias depois, ligaram-me com uma proposta e fui fazer um anúncio para a Vodafone, na semana seguinte. Percebi que iríamos passar tempos ruins e acertei. Vieram anos muito duros e a Stopline só sobreviveu graças a isso.
Qual foi a estratégia que seguiu?
Correu-me bem a vida. Filmei, gostaram, chamaram-me outra e outra vez. A dada altura, resolvi abrir um departamento de publicidade e começo a trabalhar como realizador. Vi claramente que era um setor onde ainda havia dinheiro. Percebi que ali iria faltar menos do que na televisão e no cinema.
Estava certo e segurei-me ali uns anos. Foram anos bons porque a empresa sobreviveu. Podia ter falido e fechado, mas sobreviveu graças a esse setor. Aprendi e evoluí muito tecnicamente. Rodei muita ficção, mas a minha formação técnica vem da publicidade.
Sentia-se desafiado na publicidade?
A publicidade é muito exigente. O que se faz nunca está suficientemente bem feito, estão sempre a pedir que nos superemos, e essa crítica faz chegar mais longe. Por outro lado, há dinheiro para fazer coisas técnicas que jamais aparecem no cinema português. Pude experimentar e aprender com coisas que fiz tecnicamente, que nunca teria orçamento para fazer em ficção.
A publicidade chegou a representar uma grande percentagem da faturação da Stopline?
Sim, chegou a representar 60%. Chegámos a ser a terceira produtora com maior faturação do país em publicidade.
Ponderou abrir subsidiárias da Stopline em Macau e em Angola, mas durante a pandemia abandonou a ideia e afastou-se da publicidade. Foi difícil desistir?
Não, sou muito determinado, para um lado e para o outro. Cansei-me muito. Comecei a desviar-me do meu trabalho como realizador e percebi que não estava feliz.
A sua felicidade depende da realização?
Tinha de voltar a ser realizador, voltar ao meu caminho, que foi o que me deu tudo. A minha vida como produtor correu bem, mas estava a desvirtuar aquilo que gostava de fazer.
Tem trabalhado para as plataformas e para os canais. Quem é que paga melhor?
As plataformas pagam melhor.
Há grandes diferenças em relação à RTP, com quem tem trabalhado mais, em termos de valores de produção por hora?
Quando as plataformas entram num projeto em que a RTP já está envolvida, podem contribuir com o mesmo ou com menos, porque o projeto já é da RTP. Se for da plataforma, ela investe mais dinheiro. O grande modelo de negócio vai ser a divisão de direitos. E depende de quem lidera.
Normalmente, quem lidera põe mais dinheiro. Mas, no caso da Netflix, há claramente uma diferença de investimento atroz. As plataformas podem pagar o triplo. Sei os valores porque tenho projetos no Brasil e em Espanha. A discrepância entre as plataformas e as televisões é bárbara.
As plataformas procuram em Portugal projetos que possam ser internacionalizáveis?
As plataformas querem muito produto de alavanque local. Pretendem alavancar localmente primeiro, só que têm de pensar que são um canal que emite em todos os países. Se os direitos são deles, podem exibir esses projetos e querem que eles também tenham essa capacidade.
Mas não metem os pés pelas mãos. Pedem sempre algo que tenha um impacto potente a nível local, que vai potenciar o lançamento internacional. Começam a gerar ‘buzz’ quando o projeto funciona localmente, porque é deles, que são canais generalistas mundiais.
Isso revoluciona o mercado televisivo global?
Só com uma password num computador estão a emitir um canal na Índia, sem nenhum esforço. Essa possibilidade é que veio permitir, a nós, aos noruegueses e por aí fora, criarmos histórias para o mundo. A possibilidade técnica deste novo modelo de televisão abriu modelos novos. A internet veio trazer esta vantagem, a possibilidade de emitir para o mundo inteiro, sem custos. Esta possibilidade representa uma mudança de paradigma.
O que muda?
A nossa televisão clássica, que era hertziana, assenta num paradigma completamente diferente. Envolve licenças, cabos elétricos, produção linear, tem de ter antenas para emitir, é o contrário. Nas plataformas, a transmissão é por fibra ótica. Na televisão clássica, tinha poder quem tinha antenas de transmissão. Havia um monopólio e uma dificuldade. A internet de banda larga trouxe uma mudança de paradigma. Sabemos onde começou, não sabemos como é que acaba.
Consegue antever para onde é que o setor pode evoluir nos próximos anos?
As mudanças vão ser bárbaras e vão dominar toda a televisão aberta. A televisão aberta vai desaparecer. Podem ficar canais, mas não vão ser canais, não vão emitir da mesma forma, por antena. Acho que os canais que são mais inteligentes se vão transformar em plataformas.
Como é que analisa o recente surgimento de projetos como o Now e os novos canais da TVI e da SIC?
Imagine que temos quatro criancinhas com fome e sabemos que, para elas sobreviverem durante uma semana, precisam todas de uma latinha. Se só tivermos duas latinhas, só alimentamos duas e as outras duas morrem. Isto é o que vai acontecer.
Acho estranho que quem trabalha nisto não perceba que está a caminhar nesse sentido. Vão dividir ainda mais o bolo e essa divisão vai fazer morrer alguém. Todas as empresas, todos os negócios, devem ter uma estratégia, devem ter planeamento, devem ter projeção e horizonte. A televisão em Portugal, hoje, não tem isso.
Têm os blocos publicitários, que são cada vez maiores.
Têm de o fazer porque eles já não valem dinheiro nenhum. Para rentabilizar uma hora, podiam-se pôr três anúncios em sete minutos. Esse dinheiro pagava a hora e a estrutura da televisão. Como os investidores já não pagam nada, o que sai nesses 10 a 15 minutos é quase dado.
Dá apenas para ir jantar fora. Em vez de anunciarmos um restaurante, anunciamos um restaurante, duas pastas dentífricas e uma empresa de toalhas de praia, para tentar compensar. É compensação matemática. Os investidores sabem que já não há um retorno do comprador na leitura de televisão.
Mas a televisão continua a absorver grande parte dos investimentos.
Todas as pessoas com quem tenho falado que percebem disto sabem que o consumidor verdadeiro, o que tem impacto em termos de compra, já não está na televisão aberta. Está na internet, está no consumo digital. Uma percentagem ainda está em televisão, mas o grosso já não está ali.
É lógico que as empresas, que não andam a dormir porque fazem estudos, comecem a apontar agulhas em outro sentido. Por que razão é que a publicidade está a crescer dentro do entretenimento? Porque é a única que vai sobreviver. Os americanos já fazem isto há mais de 20 anos.
A publicidade também já não é o que era?
Quando a publicidade nasceu, era fascinante. À medida que foi evoluindo e se foi desenvolvendo, continuava a ser surpreendente. Era a descoberta de um mundo novo e estava a atingir o seu auge. Quando se torna repetitiva, torna-se cansativa. Temos de perceber os ciclos. Estamos a viver ciclos de cansaço e de repetição e, nesses ciclos, o ser humano faz rejeições naturais. As mentalidades e os hábitos não se mudam por carta magna.
As mudanças levam tempo.
Mudar a forma de estar na vida leva tempo. Entrámos na Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, mas não nos sentimos europeus no dia em que entrámos, só algures nesse processo, passados 10 ou 15 anos. Em publicidade há ‘shots’ direcionados que funcionam. Fazem-se campanhas isoladas de coisas, o marketing consegue fazer isso e consegue mobilizar toda a gente, mas estamos a falar de uma forma genérica e estruturada.
Como setor regular e tradicional, já não é o que era, não tem resultados, porque as pessoas que compram já não estão lá e os que veem não vão depois fazer compras. O setor sabe disto e as coisas têm de caminhar para uma publicidade que é diluída, que está onde as pessoas também a compram ou aceitam.
As plataformas também vieram alterar isto?
Agora vamos viver um contraciclo, porque as plataformas vão começar a ter publicidade. Há uma vantagem, as plataformas vão ter duas linhas. Esta é a grande mudança da televisão, porque a televisão aberta é para toda a gente, as plataformas não. Na internet, as pessoas podem bloquear a publicidade.
As que quiserem pagar menos subscrevem pacotes com anúncios e isto vai voltar a dar um ‘boost’ à publicidade, que vai migrar das televisões tradicionais, porque aí é que estão os consumidores efetivos. Isto não vai ser amanhã, já está a acontecer. Basta ver o que a Max fez este ano, já comprou as olimpíadas. Isto é estar no ‘live’ e no desporto. Se estiverem no desporto, dominam tudo.
Porquê?
O mais importante é o entretenimento e a seguir é o desporto. O segundo o vício do consumidor é o desporto. O primeiro é o entretenimento, é com isso que se lidera, porque é o sonho. As pessoas são fascinadas por atletas. O desporto tem o lado da competição, a parte do jogo e os heróis. Liderando isso, lideram tudo.
Tudo?
O que é que fica a faltar? As notícias. O que mais vão ter? As notícias são o que é necessário para depois estar no meio. Mas, provavelmente, quando as notícias chegarem a esse lugar, é bom que voltem a ter um momento bom.
É preciso que o mundo da informação volte a estar no mercado com dinheiro, com estrutura financeira. Para não ser maltratado, como está a ser neste momento. O papel deixou de vender e as televisões, como também já não têm dinheiro, têm de expulsar os jornalistas. É nisto que estamos.
O que é que vai acontecer?
Vai causar uma doença muito grande a um país. Deixamos de ter os grandes jornalistas, os bons jornalistas, deixamos de ter um setor. Voltamos à história dos guionistas. Temos de ter um setor bem pago, bem estruturado, com isenção, sem precisarmos de o pressionar, para que ele funcione bem. Se há coisa que vamos precisar toda a vida é de estarmos bem informados.
Isso não vai mudar, garanto. Aliás, um dos próximos grandes desafios deste paradigma é como gerir essa informação que a internet trouxe. Esse é o grande mal. Temos a grande aldeia global e a maior forma de aceder à informação que alguma vez a humanidade teve, mas já há estudos que provam que a maior parte das pessoas acede a informação que é lixo.
Continua a frequentar feiras internacionais de televisão ou já não os valoriza tanto?
Deixei de ir tanto para ter mais tempo para escrever. Ando a filmar muito, voltei à minha vida de realizador, o que faz com que tenha menos tempo. Escolho anualmente ir a três mercados de televisão.
A quais?
Esse é o meu segredo… [risos] Como a Volf tem muitos projetos em Espanha, onde tenho várias coisas em desenvolvimento e negociação, faço os dois mercados espanhóis de séries. Um deles é o Iberseries Platino & Industria, de Madrid, que é a minha segunda casa. Tenho ido também, desde o início, ao Conecta Fiction & Entertainment e faço um em França. Na Europa, França e Espanha são os dois grandes países deste negócio.