“Se uma produtora não caminhar na internacionalização não sobrevive”
Há um antes e depois de Glória no negócio da SP Televisão. Em entrevista ao M&P, Jorge Marecos, administrador da produtora, explica como a produção da primeira série original da Netflix em Portugal está a abrir as portas da internacionalização.
Pedro Durães
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Há um antes e depois de Glória no negócio da SP Televisão. Em entrevista ao M&P, Jorge Marecos, administrador da produtora, explica como a produção da primeira série original da Netflix em Portugal está a abrir as portas da internacionalização
“Uma das vantagens práticas de termos feito o Glória é que já somos conhecidos. Quando batemos à porta, em princípio abrem-na”. É desta forma que Jorge Marecos, administrador da SP Televisão, resume o impacto da primeira produção original da Netflix em território nacional. Influência direta ou não, certo é que a alavancagem do negócio internacional da produtora tem sido crescente. Só durante o Conecta Fiction & Entertainment, encontro internacional de profissionais do audiovisual que decorreu em Toledo (Espanha), foram conhecidos dois novos projetos internacionais com envolvimento da SPi. O livro O Codex 632, do jornalista José Rodrigues dos Santos, vai dar origem à primeira coprodução conjunta desta unidade da SP com a RTP e com a plataforma de streaming Globoplay. A série terá seis episódios e será gravada em Lisboa e no Rio de Janeiro. Já O Último Lobo, projeto do realizador e argumentista Bruno Gascon e das produtoras portuguesas SPi e Caracol Studios, venceu o Prémio RTVE Desenvolvimento ao Melhor Pitch, garantindo um financiamento de 50 mil euros entregue diretamente pelo operador público de televisão espanhol.
Meios & Publicidade (M&P): Glória representou um marco na produção nacional, sendo a primeira série original da Netflix produzida em Portugal. Como foi o caminho até chegarem a este projeto?
Jorge Marecos (JM): Foi relativamente simples. Sempre pensámos que gostaríamos, e que teríamos a capacidade, de trabalhar para a Netflix. Há três ou quatro anos tivemos a oportunidade de ter um encontro em Madrid com o responsável, na altura, para a região ibérica e fizemos um pitch, em conjunto com o Pedro Lopes, autor do projeto. Daí até começarmos a rodagem demorou cerca de dois anos. Era o tipo de produto que, já nessa fase, interessava à Netflix. Essa aproximação foi, para nós, um momento muito importante.
M&P: Partiu do vosso lado?
JM: Havia outras pessoas envolvidas, mas partiu muito da SP. Depois houve esse follow up de conversas com o responsável ibérico e muito desenvolvimento aqui internamente, em conjunto com o autor. No início só havia um guião, foi-se desenvolvendo, escrevendo, até se chegar ao projeto final que foi objeto de rodagem e de contrato.
M&P: Houve recetividade imediata do lado da plataforma?
JM: Falámos de vários projetos mas consideraram que este era o tipo que lhes interessava mais. Tinha uma grande portugalidade, era algo que só podia ser feito em Portugal, era uma história específica deste mercado, acabando por merecer o privilégio da escolha.
M&P: A RTP entrou quando?
JM: Muito depois. Fomos nós que a abordámos. Parecia-nos bem que uma estação estivesse associada.
M&P: A entrada da Netflix no mercado português acontece em 2015. Foi preciso esperar cinco anos até avançar, em 2020, a primeira produção original portuguesa. Por que motivo não aconteceu mais cedo?
JM: Por várias razões. O interesse surge, não quando a Netflix entra na Europa e em Portugal, mas quando começa a haver a consciência da própria plataforma de que tinha de produzir localmente para ter mais sucesso comercial. Lembro-me de eles dizerem, na altura, que o objetivo era produzir nos países do sul da Europa, já tinham começado noutras geografias mas não em Portugal. Há também uma evolução da Netflix, que começou a reconhecer a necessidade de produzir noutros países para conseguir penetrar em determinados mercados. Ter produtos de outros países, outro tipo de narrativas. Tal como qualquer grande distribuidora, a Netflix está em constante evolução, o que queria há cinco anos não é seguramente aquilo que quer hoje. Os próprios produtos que procura hoje são diferentes, embora tenham até uma ideia daquilo que querem daqui a dois ou três anos. O próprio catálogo da plataforma tem vindo a evoluir. Atualmente está a fazer uma grande aposta no mainstream, procura sobretudo produtos que viajam com grande facilidade e transversalmente em todos os países em que está presente.
M&P: A Netflix mantém uma estrutura ibérica, sem presença efetiva no mercado português. Dos contactos que tem tido, parece-lhe que produzir em Portugal será de facto uma prioridade para a Netflix?
JM: A prioridade é relativa. A prioridade deles é ter séries que resultem junto do seu público. Não quererão também deixar de olhar para Portugal. Mas todos temos consciência da exiguidade do território nacional e do mercado português. Serão com certeza coisas que nasçam em Portugal mas têm de ser projetos com aquilo a que eles chamam ‘international level of storytelling’, que lhes garanta a possibilidade de cruzar vários mercados. Se não tiver, o produto não viaja.
M&P: Quais são os principais desafios enfrentados pelas produtoras nacionais para garantir esse nível nos projetos?
JM: Não é tanto a feitura, que é também complexa, difícil, com uma grande dose de risco envolvida. Mas a grande dificuldade está no ativo inicial, na ideia e no guião. Esse desenvolvimento é demorado, é um investimento cego porque nunca se sabe se chegará a bom porto. A grande dificuldade é suportar o investimento para garantir o desenvolvimento desse ativo até ao ponto de o conseguir vender.
M&P: Trabalhar com uma plataforma de streaming como a Netflix coloca exigências diferentes daquelas que enfrentam, por exemplo, nas coproduções internacionais com estações de televisão, modelo em que a SP também tem estado ativa, em séries como Auga Seca?
JM: Não, hoje em dia o nível internacional é transversal. Não há nenhuma interferência, não existe aquele fantasma que, às vezes, se ouve de que eles interferem ao nível da realização.
M&P: Não há a questão dos algoritmos, das produções com receita de sucesso baseada nos dados recolhidos sobre o consumo na plataforma?
JM: Nunca nos cruzámos com nada disso. Agora, não sei como é que eles fazem para discutir um guião, não conhecemos esse processo interno de decisão. Há milhares de projetos, por que é que lhes interessa mais este do que aquele tem a ver com processos de decisão internos. Estando de fora, a única segurança é conseguir fazer projetos que veiculem impacto emocional efetivo.
M&P: Este tipo de projetos acarreta valores de investimento mais elevados. Qual foi o investimento alocado à produção do Glória?
JM: Números não revelamos. Nesta atividade, como noutras, é impossível revelar um número sem estar a falar do outro. Estaria a revelar dados que, se calhar, o meu parcerio não quer que sejam revelados.
M&P: Mas pode dar uma ideia de como comparam com a realidade portuguesa, nomeadamente ao nível do custo por episódio? São valores realmente muito diferentes?
JM: São bastante diferentes. O que não quer dizer que corresponda a grandes margens de lucro. Porque o intrincado da produção e as dificuldades que existem na feitura de cada projeto traduzem-se numa demora, sem falar nos custos above the line, como atores conhecidos e outros elementos, que tornam o projeto mais oneroso.
M&P: E ao nível da distribuição de direitos? Consta que não é “pêra doce” negociar com a Netflix. Qual foi a vossa experiência?
JM: Não é pêra doce nem deixa de ser. É simples como água, uma plataforma de streaming trabalha exatamente como uma televisão nacional. Você chega lá e eles fazem uma obra de encomenda, ponto final parágrafo. É a nossa experiência, o que não quer dizer que, se tivermos outro tipo de financiadores, eles não estejam abertos a outra forma de negociação. Mas para uma plataforma de streaming é sempre complicado. Eles querem normalmente estrear todos os episódios de uma vez e simultaneamente em todos os países onde estão. Admito que, com uma Century Fox ou outros, possa haver ali uma janela de exploração diferente mas, de resto, será sempre uma pequena janela. Para eles é muito mais fácil desta forma. Se eu estivesse na Netflix, provavelmente nem quereria muito fazer coproduções. Porque o custo da administração da exploração pode ser insuperável.
M&P: Mas há mais exigências ao nível da exploração dos direitos no caso das plataformas de streaming por comparação com as estações de televisão?
JM: O contrato base é simples, é uma obra de encomenda. Se é uma obra de encomenda, em princípio eles têm a capacidade e o direito de explorar tudo. Se não for, é preciso lutar pelos territórios que se quer e pelo tipo de janela de exploração que se pretende.
M&P: Como foi com Glória?
JM: É uma obra de encomenda. Eles querem um guião, têm confiança na produtora, fazem uma obra por encomenda e pagam um xis por episódio. Exatamente como toda a vida trabalhei com a RTP, por exemplo. Eles exploram completamente o produto, é deles a decisão de quais os mercados em que o colocam. A Glória estreou em 194 países em simultâneo.
M&P: Nesses moldes, é vantajoso enquanto negócio para a SP ou a grande mais-valia de participar num projeto desta dimensão acaba por ser a montra que representa e a alavancagem que dá à vossa estratégia de expansão internacional?
JM: Nesta fase do campeonato, gostamos de trabalhar como obra de encomenda. É bom para nós. Se não é uma obra de encomenda, é preciso ir procurar outros investidores ou colocar investimento próprio. Isso implica uma capacidade financeira que… esqueça.
M&P: Por comparação com uma coprodução como o Auga Seca ou produtos que desenvolvem para as televisões nacionais, é financeiramente mais atrativo produzir para uma plataforma de streaming?
JM: É diferente. A diferença de interesse vem pelo volume global de faturação. É diferente estar a fazer um projeto de xis ou de cem vezes xis.
M&P: Entretanto avançou a produção da segunda série original da Netflix em Portugal, desta vez a cargo da Ukbar. Há projetos em cima da mesa para voltar a trabalhar com a Netflix?
JM: Temos sempre projetos mas não está nada iniciado com eles. Mas a curto prazo vamos ter essa capacidade. Uma das vantagens práticas de termos feito o Glória é que já somos conhecidos. Quando batemos à porta, em princípio abrem-na.
Leia a entrevista completa a Jorge Marecos, administrador da SP Televisão, na edição impressa do M&P