Alterações – Crónica de Marco Pacheco
Estamos numa agência de publicidade das grandes. Estamos no tempo em que as agências ainda viam utilidade numa função chamada de tráfego, uma espécie de polícia sinaleiro que regulava o […]
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Estamos numa agência de publicidade das grandes. Estamos no tempo em que as agências ainda viam utilidade numa função chamada de tráfego, uma espécie de polícia sinaleiro que regulava o fluxo de trabalho entre criativos, accounts e produção.
Estamos também no tempo em que um criativo que atinge uma certa idade sem alcançar um certo cargo é considerado mediano, mais ou menos, bonzinho, quando não um cota falhado e ultrapassado que deixou passar o comboio da ascensão hierárquica.
Foi o que aconteceu ao sénior mais sénior desta agência, diz ele que por vontade própria, que convites não lhe faltaram, que recusou todos, que aquilo que sempre o apaixonou foi criar as suas próprias ideias e não aprovar ou desaprovar as de outros. Se soubesse o que o esperava, talvez tivesse decidido de maneira diferente.
O sénior foi ficando na agência grande até se tornar demasiado velho para participar nas campanhas importantes e demasiado caro para ser despedido. Atualmente, faz apenas aqueles trabalhos que mais ninguém quer fazer: folhetos, monofolhas, cartazes, stoppers, forra alarmes, banners, MREC e outros peças altamente motivadoras.
— Sou muito caro para isto — diz ele amiúde e com razão, mas a gestão tem razões que a razão desconhece, e de certa forma ainda bem: assim continua empregado (embora não desdenhasse ir embora com uma indemnização choruda) e, de vez em quando, lá aparece um trabalhinho que lhe reaviva o brilho nos olhos, como o anúncio de imprensa que criou recentemente para o maior cliente da agência.
Empenhou-se como já não se empenhava há anos, virou noites a aperfeiçoar a maqueta para apresentar ao cliente, fez questão de ser ele a apresentá-la, acompanhou a fotografia até às três da manhã e está agora na fase de pós-produção, dando os retoques finais antes da entrega para veiculação.
— Está a ficar lindo — diz ele à colega que é o tráfego da agência, observando ambos a prova de cor exposta sobre a secretária — mas ainda falta…
Faltava sempre qualquer coisa. A tráfego não ficou surpreendia quando ele voltou a pedir novas alterações, não muitas, nem muito grandes, mas absolutamente imprescindíveis porque:
— Isto não pode ir para a rua assim.
— Tu é que sabes.
E sabia mesmo, não era uma frase feita. O sénior era o único criativo na agência que aprovava o seu próprio trabalho sem passar pelo diretor criativo, gozava de bastante independência, talvez para contrabalançar o ostracismo a que fora votado. A tráfego não reclamou das novas alterações. Tudo o que ela tinha a dizer sobre o prazo de entrega daquela bendita imprensa tinha sido dito há duas semanas e em termos bem claros:
— Tenho de entregar isto daqui a duas horas. Não há tempo para mais nada.
O sénior não respondeu. Fez de conta que não ouviu e, depois de assinalar com um marcador mais um retoque, devolveu-lhe a prova de cor. Ela recolheu-a também sem dizer nada, mas sabendo já exatamente o que iria fazer.
Disse à account que estava tudo aprovado e a peça saiu durante duas semanas num jornal diário, enquanto, na agência, o sénior continuava alegremente a pedir alterações, convencido, quiçá, que a campanha teria sido adiada, que o cliente ainda não teria dado o OK final ou qualquer outro motivo que ele nunca procurou esclarecer, nunca fez perguntas, nunca estranhou aquele prazo infinitamente elástico, o sonho de todos os criativos perfecionistas.
Tu és doida! — disseram os colegas da tráfego a quem ela contou a proeza — se ele descobre, mata-te!
Era uma questão de tempo, achavam todos. Mais cedo ou mais tarde, ele haveria de abrir o tal jornal e ver lá escarrapachado o seu querido anúncio sem uma única das últimas quarenta e muitas alterações pedidas. Só que o tempo continuava a passar e o sénior não parava de mudar aqui, retocar ali, mexer acolá, contrastar acoli, disfarçar além.
Passaram três semanas, passaram quatro, o anúncio deixou de ser veiculado, e o sénior:
— Vê só aqui esta sombra, OK? Está muito dura.
Até que um dia, por volta da décima nona rodada de alterações, a tráfego, arrependida de ter feito do colega o bobo da agência (já quase todos sabiam) e de ter desrespeitado quem, pela idade e pela carreira, merecia respeito, decidiu contar-lhe a verdade e pedir-lhe desculpa.
— Sabes, este anúncio…
— Sim…
A tráfego hesitou. Notou o brilho nos olhos do sénior. O tom daquele sim não foi de interrogação, nem de desconfiança, mas de expetativa, quase de vaidade, como se esperasse um elogio ao anúncio. Que ela fez:
— Este anúncio é muito giro. Parabéns!
Naquele momento, a colega percebeu que dizer-lhe a verdade seria privá-lo da única alegria que ele ainda tinha no trabalho. Aquelas alterações, por mais insignificantes que fossem, por mais inúteis, por mais patéticas, eram a parte mais estimulante do seu dia. Davam-lhe alento para suportar tudo o resto. Se dependesse da tráfego, ele poderia fazer alterações o resto da vida.
Crónica de Marco Pacheco, diretor criativo executivo da BBDO e escritor