Quando o intervalo é o novo episódio
Com a ascensão das plataformas de streaming, acreditava-se que o futuro do entretenimento seria livre de interrupções publicitárias.

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Durante os primeiros anos, um dos principais fatores de atração ao consumidor desses serviços foi precisamente a ausência de anúncios, um grande contraste com aquilo a que o espectador estava habituado na televisão tradicional.
No entanto, a verdade é que este cenário está a mudar de forma acelerada. Grandes serviços como a Netflix, a Disney+ e a Amazon Prime Video já adotaram planos de subscrição com anúncios, em troca de um valor mensal mais baixo, um movimento estratégico em resposta à necessidade de diversificar a fonte das receitas, combater a perda de subscritores e oferecer opções mais acessíveis. Mas não foi certamente um passo dado sem o descontentamento e críticas de algumas pessoas.
A pergunta e o foco destas plataformas passaram a ser, então, como podem elas captar a atenção de um público cada vez mais disperso, avesso a qualquer tipo de interrupções e, sejamos sinceros, com uma capacidade de atenção reduzida?
Foi então que os anúncios “à la carte” surgiram como uma tentativa de tornar o intervalo mais apelativo e menos intrusivo. Ao contrário dos tradicionais blocos publicitários lineares, estes anúncios são personalizados com base nos interesses, comportamentos e histórico de visualização de cada utilizador. Com os avanços da inteligência artificial e do machine learning, é possível criar campanhas ajustadas de forma tão precisa, que já é possível transformar a publicidade em algo relevante e, por vezes, até numa extensão do próprio conteúdo.
Imaginemos um espectador que acompanha uma série de ficção científica. Esse espectador poderá tem maior probabilidade de ter interesse em anúncios de produtos tecnológicos ou estreias de filmes e séries do mesmo género, enquanto outro, que esteja mais interessado em programas de culinária, será impactado por campanhas de alimentação saudável, refeições gourmet ou eletrodomésticos de cozinha. Mas nem só o consumo de conteúdos poderá ditar a segmentação de anúncios, e a Amazon Prime Video aí parte à frente, pois todo o ecossistema de consumo no Market Place Amazon define interesses e padrões de consumo ainda mais fiéis.
Esta personalização consegue reduzir significativamente a sensação de interrupção forçada, tornando a experiência do consumidor mais fluida e agradável. E, na verdade, para as marcas, trata-se de uma oportunidade única de comunicar diretamente com o seu público-alvo, aumentando as probabilidades de conversão e envolvimento.
Não obstante, é preciso ter em mente que esta fragmentação levanta uma questão fundamental: o que acontece ao impacto e à notoriedade das marcas quando se perde a massificação das campanhas publicitárias? No passado, os anúncios transmitidos em canais generalistas e em horário nobre alcançavam milhões de pessoas em simultâneo, criando momentos de discussão coletiva e consolidando a imagem das marcas no imaginário popular.
Recordemos campanhas icónicas que marcaram gerações e se tornaram parte do património cultural como as campanhas de Natal da Popota, a assinatura “Pescanova, o bom sai bem” (que desafio a ler sem cantarolar), a Worten que tem tudo e mais não sei o quê, ou a NOS que colocou o país a cantar um dos hinos dos enormes Queen. Hoje, a hiperpersonalização pode diluir essa força, uma vez que cada espectador vê conteúdos distintos, fragmentando a experiência coletiva e tornando mais difícil para as marcas atingirem um público vasto de forma simultânea.
O caso do cinema oferece um exemplo interessante para refletir sobre esta transformação. Durante décadas, os intervalos eram parte integrante da experiência cinematográfica, proporcionando aos espectadores um momento para recarregar energias e, para as marcas, uma oportunidade única de comunicar num ambiente imersivo e cativado. Com a eliminação dos intervalos e a duração crescente dos filmes – que hoje ultrapassam frequentemente as três horas – perdeu-se esse espaço privilegiado de comunicação direta. O espaço de cinema, e o foco de atenção que as plateias entregam à grande tela, era muitas vezes usado pelas marcas e agências como barómetro de agradabilidade das campanhas mais especiais. Era comum estar em sala para “ouvir a reação das pessoas”, e o intervalo era uma boa ocasião para tal.
Já, em contrapartida, eventos como a Super Bowl demonstram como o intervalo pode ser elevado a um verdadeiro espetáculo que vive por si só. Neste caso, os anúncios não são encarados como uma mera interrupção, mas sim como uma parte integrante do evento, antecipados com entusiasmo tanto pelo público como pelos meios de comunicação social. As marcas investem somas astronómicas e fazem um all-in criativo para criar campanhas cinematográficas, emocionantes e memoráveis, que consigam gerar repercussão global e tornar-se fenómenos virais nas redes sociais. Este modelo é a prova de que, quando bem executados, os intervalos publicitários podem deixar de ser uma distração para se tornarem um momento de entretenimento em si mesmos.
Aqui, e na realidade norte americana, falamos de um verdadeiro fenómeno que conjuga massas com inserção dinâmica de anúncios personalizados. Mas o fenómeno do break do Super Bowl, este ano não ficou pelos écrans, alastrou-se inclusive ao estádio onde uma campanha da financeira Rocket colocou o Caesars Superdome a cantar o clássico Take Me Home, Country Roads. Quando termina o anúncio e a transmissão corta para o estádio, a música está a ser cantada num follow up perfeito do break, num fenómeno claro de massas.
E a inteligência artificial tem tido (e, certamente, continuará a ter) um papel essencial enquanto ferramenta capaz de redefinir o papel dos anúncios em streaming. Para além de permitir uma segmentação mais precisa, a tecnologia possibilita a criação de campanhas dinâmicas e adaptáveis em tempo real, que interagem com as preferências e o estado emocional do espectador em tempo real. Imaginemos um futuro em que o próprio anúncio responde às reações do utilizador, ajustando o tom, o ritmo e até a narrativa de acordo com o envolvimento demonstrado no momento. Neste Super Bowl que falei acima muitos desses passos estão a ser dados. Em vez de serem um incómodo, os intervalos podem tornar-se um complemento natural e quase orgânico à experiência do utilizador.
Outro caminho promissor é a criação de anúncios mais cinematográficos, com elevada qualidade de produção e narrativas cativantes que se assemelham a curtas-metragens. Em vez de recorrer a mensagens comerciais convencionais, as marcas podem explorar histórias envolventes que emocionam, inspiram e permanecem na memória do público. Esta abordagem aproxima a publicidade do próprio conteúdo de entretenimento, desfazendo as barreiras entre ambos e aumentando significativamente a aceitação dos anúncios. Se vamos servir um anúncio a la carte podemos algumas vezes servir um prato especial.
Num mundo de atenção fragmentada e de múltiplas distrações, o grande desafio é transformar a publicidade em entretenimento puro e relevante e obviamente tornando as marcas apetecíveis. E, para isso, o caminho das marcas é a aposta em experiências imersivas e inovadoras que dialoguem com a audiência de forma mais autêntica e personalizada. É necessário compreender que os consumidores de hoje estão mais informados, exigentes e seletivos do que nunca, e apenas as campanhas que oferecem valor real, seja de interesse no produto seja na mensagem, conseguem captar a sua atenção. Os meios estão cada vez mais preparados, e estamos cada vez mais atentos.
O futuro dos anúncios em streaming não está em evitá-los, mas sim em reinventá-los. O sucesso dependerá da capacidade de criar experiências publicitárias que não interrompam a narrativa, mas que acrescentem valor e enriqueçam o momento para o espectador. Se as marcas conseguirem transformar os intervalos em momentos tão irresistíveis quanto o próximo episódio, o potencial de impacto e de ligação emocional com o público será ilimitado.
Filipe Neves
Managing Director da Arena Media